sexta-feira, 29 de março de 2013

Dicas para Escrever sobre a Clínica Psicanalítica

As questões que sempre se impõem a quem quer escrever sobre a Psicanálise na Universidade


Nesta semana, o Prof. Christian Dunker compartilhou um texto seu sobre a tarefa de produzir uma pesquisa em psicanálise no contexto da clássica discussão sobre psicanálise e universidade. É um texto muito sábio, refletindo a experiência de quem está há anos nesse percurso e se põe a refletir com inteligência e clareza sua prática. Tem o mérito de focar diretamente nas questões práticas e com isso analisar as transferências que se produzem nas relações interpessoais e intrapessoais de quem se propõe a fazer um trabalho de pesquisa acadêmico na área.  Além disso é um artigo muito bem humorado e suscinto, na forma de 27+1 erros comuns de quem escreve uma tese em psicanálise. Foi publicado em um número especial de 2010 sobre pesquisa em psicanálise de um periódico da Associação Psicanalítica de Curitiba, mas mais do que um artigo é uma ótima crônica sobre o meio acadêmico. Por conta disso caberia facilmente em uma revista de divulgação científica ou mesmo em um veículo jornalístico mais geral. Achei fantástico e decidi compartilhar com vocês, leitores deste blog. Segue o link:

http://www.ip.usp.br/portal/images/stories/psc/2010_-_27__1_Erros_mais_comuns_de_quem_quer_escrever_uma_tese_em_psicanlise.pdf

O número todo é muito interessante, mas infelizmente os textos não estão disponíveis online. Para quem quiser dar uma olhada nos autores, segue o link da Associação:

http://www.apccuritiba.com.br/revistas/revista-no-20-psicanalise/

Front CoverPor fim, para aqueles que apreciaram o aperitivo e gostariam de uma leitura e discussão mais aprofundada, eu recomendo o clássico Escrever a Clínica, de Renato Mezan, publicado pela Casa do Psicólogo. É a transcrição de um curso sobre produção de textos e pesquisas em psicanálise ministrado na PUC-SP. Mantém a linguagem coloquial e informal de palestras em um curso prático, com também ótimas indicações, dicas e reflexões. Está disponível no Google Books, para visualização de algumas partes. Mas não encontrei um link para o PDF.

http://books.google.com.br/books/about/Escrever_a_Clinica.html?id=1JVwbct4Ft0C&redir_esc=y

Bem, acho que é isso. Ficam a indicações. Boa leitura!

terça-feira, 19 de março de 2013

Pink Freud

Essa é para descontrair...

Esse blog nasceu trazendo imagens inusitadas da apropriação de Freud pela cultura Pop. Seguem alguns dos layouts que foram feitos no ano passado para a tradicional festa dos estudantes de psicologia da UNESP Bauru, que se chama Pink Freud!

sábado, 16 de março de 2013

O Segredo da Auto-Ajuda (Matéria Revista Mythos n. 4)


O Campo da Psicologia e o Segredo da Auto-Ajuda

A literatura de auto-ajuda é uma tendência crescente na cultura contemporânea que muitas vezes se confunde com as publicações de divulgação científica do campo das psicologias.  Embora a comunidade acadêmica e profissional tenha razão em criticar a banalização que esse segmento proporciona, o apelo de tal discurso pode ser explicado pela própria configuração do espaço psicológico que emerge na modernidade

Érico Bruno Viana Campos*

Os leitores das revistas semanais de grande circulação e observadores de estantes em livrarias aprenderam a reconhecer um segmento editorial que cada vez mais ganha destaque, a chamada “literatura de auto-ajuda”. Nos últimos anos, vários títulos desse rótulo se tornaram best-sellers, como O Segredo, Quem Somos nós? e A Cabana, gerando inclusive versões cinematográficas de relativo sucesso, a tal ponto que podemos hoje reconhecer uma certa cultura em torno desse termo. Mas o que é a auto-ajuda, afinal? O que justifica seu encanto no âmbito da sociedade de consumo contemporânea? Minha hipótese é que a auto-ajuda seja um sintoma da própria configuração do espaço psicológico que emerge na modernidade ocidental, constituindo uma espécie de reverso do saber psicológico que toca na própria alma da condição humana universal.

Caracterização do fenômeno da auto-ajuda
O termo auto-ajuda, se refere a qualquer iniciativa auto-gerida de indivíduos e/ou grupos de buscar aprimoramento profissional, econômico, físico, intelectual, emocional ou espiritual. É aplicado de forma bastante indiscriminada no campo da saúde, da educação e dos negócios, tendo como principal reflexo um mercado editorial específico, conhecido como literatura de auto-ajuda.
Embora seja um segmento muito diversificado, que vai de recursos de aprendizagem profissional até a orientação espiritual, a auto-ajuda apresenta algumas características gerais comuns. Dentre elas está a apresentação de fórmulas supostamente simples e esquemáticas que proporcionam mudança radical na vida profissional e pessoal (“Siga os três passos do sucesso!”). Outra característica recorrente é a presença de afirmações imperativas voltadas para a atuação concreta do leitor em seu meio com ênfase no pensamento positivo como fomento à realização e ao sucesso (“Querer é poder!”). Também é geral nestes livros a alegação de um embasamento desses princípios em um conjunto de técnicas com suposto respaldo científico e institucional (“Comprovado por cientistas de Harvard!”). Igualmente recorrente é a caracterização da atividade do leitor como uma habilidade emocional expressiva e singular (“Siga sua intuição para encontrar seu lugar no mundo!”) e a presença massiva de recursos didáticos, ilustrativos e retóricos, dando um tom de casualidade, proximidade e facilidade para o leitor (“É extremamente fácil. Veja!”).
Essas características dão um tom de apoio e suporte para o leitor, que se vê amparado de um conjunto de técnicas e estratégias que podem garantir seu sucesso pessoal e profissional. Portanto, não são livros que fomentam a reflexão ou o questionamento de si mesmo ou da realidade, mas indicativos de ação efetiva e imediata sobre o meio circundante da pessoa. Uma característica interessante é que quase sempre as questões pessoais, emocionais e espirituais estão articuladas ao sucesso profissional e à possibilidade de visibilidade social e de consumo. Isso mostra o quanto esse fenômeno está adaptado ao contexto da sociedade de consumo e às seduções que o modelo econômico vigente imprime à subjetividade contemporânea. Não é à toa que o grande nicho dessa cultura seja o meio empresarial e corporativo, por meio dos palestrantes que vendem suas fórmulas de sucesso aos crédulos consumidores de suporte emocional. Sem dúvida, é no registro do “mercado” que o fenômeno da auto-ajuda se instaura e floresce.

Breve história do gênero
Curiosamente, o primeiro livro do gênero, entitulado “Auto-Ajuda” (Self Help) foi escrito pelo ativista e reformador britânico Samuel Smiles (1812-1904) em 1859. Naquele tempo, o auge da Era do Capital, segundo Eric Hobsbawn, o capitalismo industrial e financeiro se consolidava no ocidente, sufocando as revoluções liberais que alçaram a classe burguesa ao poder. O individualismo liberal e o Estado disciplinar se consolidavam como organizadores da vida social, desorganizando a vida comunitária e a consciência de classe, deixando os trabalhadores sem outra alternativa de amparo social que não ajudarem a si mesmos solitariamente. Essa é a tônica e o intento do livro de Smiles, uma espécie de manual de individualismo para uma era de desilusão coletiva. Portanto, podemos dizer que a literatura de auto-ajuda nasce sob o signo da crise da subjetividade. No entanto, o gênero só fará sucesso e se tornará um fenômeno a partir da segunda metade do século XX, no contexto do pós-guerra e da última faceta do capitalismo: a economia pós-industrial e a sociedade de consumo. Nesse sentido, o grande best-seller pioneiro do gênero é “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, de 1937, do empresário americano Dale Carnegie (1888-1955). Este livro já pode propriamente ser caracterizado como um manual de auto-ajuda, com todo o apelo mercadológico que a cultura americana do self made man e do business man pôde imprimir ao gênero. O fenômeno se instaura nos anos dourados de 1950 e 1960, mas é só com a crise econômica e a instabilidade política do final dos anos 1970 que o seu apelo cresce. Foi então em meados dos anos 1980 que o New York Times criou uma categoria específica de auto-ajuda em suas listas de mais vendidos, selando o movimento como um gênero literário. Desde então, fomos nos acostumando a reconhecer três gêneros literários nas listas de vendas de livros: ficção, não-ficção e auto-ajuda.
Também foi a partir dos anos 1980 que a literatura de auto-ajuda se instalou no Brasil. De início, ela foi marcada por um certo apelo místico e alternativo típico dos movimentos hippie e de contracultura dos anos 1960-1970, com uma marca de espiritualidade típica de nossas tendências ao sincretismo religioso. A partir dos anos 1990, contudo, ela passou a se caracterizar mais claramente no ramo dos negócios e do marketing. O grande marco desse momento foi o Dr. Lair Ribeiro, com seus treinamentos motivacionais baseados nas técnicas de programação neurolinguística, que são oferecidos até hoje com o sugestivo título de Poder Mental Transformacional (PMT): “inteligência aplicada à evolução”. A partir de então já se via a articulação clara entre técnicas de motivação e marketing na gestão da vida pessoal e profissional que tanto caracteriza o gênero. Essa tônica prevalece até hoje, de forma que é no mercado da chamada “cultura organizacional” que o gênero floresce e se sustenta prioritariamente, por meio de ciclos de palestras e treinamentos empresariais que geram as publicações que chegam ao público em geral. Por outro lado, convém ressaltar que devido às características sincréticas da cultura brasileira, esse gênero acaba se articulando com o de espiritualidade, misticismo e esoterismo. Em particular, temos no Brasil um filão paralelo da literatura de auto-ajuda que se desenvolve prioritariamente a partir dos praticantes e simpatizantes da religião espírita, cujos grandes expoentes são os livros psicografados por médiuns como o pioneiro Chico Xavier e a mais recente Zíbia Gasparetto. Nessa vertente, o marketing e a promoção do sucesso são menos presentes, dando lugar ao fomento do crescimento emocional e espiritual, mas as linhas gerais do discurso da auto-ajuda permanecem. Além disso, o grau de sobreposição e mesmo confusão entre os níveis psicológico, espiritual e empresarial, ou entre perspectivas téorico-metodológicas e mesmo posições éticas e políticas é tamanho que fica muito difícil caracterizar ou discriminar exatamente as diferentes vertentes do fenômeno.
De qualquer forma, o fato é que por maior que seja o sucesso que essas publicações alcançam, a literatura de auto-ajuda é considerada como um certo “Lado B”, de caráter mercadológico, banalizado e massificado, das teorias e práticas psicológicas consideradas científicas e acadêmicas, gerando atrito no campo da reserva dos mercados entre os profissionais “psi” e os autores desse tipo de literatura com suas práticas. É notável nas prateleiras das livrarias como o segmento de psicologia se tornou um apêndice do genérico “auto-ajuda/espiritualidade”. Nota-se, portanto, como a questão não se resume à determinação do que é mais prestigiado, ou entre o que é de “elites” e o que é para as “massas”, mas à própria delimitação das identidades profissionais e suas práticas legítimas. Nesse sentido, a auto-ajuda acaba se configurando como uma problemática de mercado no campo da distinção entre práticas “psi” e práticas dita “alternativas”. O exemplo mais recente desse embate é a nova modalidade de orientação de carreira/vida pessoal chamada de coaching, que muitos psicólogos consideram uma modalidade disfarçada de psicoterapia que foi desenvolvida especialmente para a prática profissional de administradores e executivos. Isso sem falar que, por ser algo que se desenvolve no mundo empresarial, que supostamente garante o sucesso e que está na moda, o coaching goza de grande prestígio e status, de forma que precisa ser mais caro do que os tratamentos e práticas comuns.
Por conta disso é que a auto-ajuda é tomada com bastante desdém pelos profissionais de psicologia que se consideram “sérios”. É por isso também que pouco se fala desse fenômeno no campo propriamente psicológico. Ele é um verdadeiro “resto”, um quase “lixo” das teorias e práticas psicológicas. No entanto, a coisa não se configura com limites tão precisos como as posições ideológicas costumam pintar. Há muitos psicólogos “sérios” que se rendem à mesma lógica da auto-ajuda, sem falar que muitos livros de auto-ajuda acabam sendo utilizados e divulgados por psicólogos em suas práticas. Isso sem falar na imensa diversidade de práticas, perspectivas e modelos que se configuram e articulam de forma incontrolável nesse amplo campo em que incidem as lógicas do trabalho, da educação e da saúde. O que nós temos não é uma situação bipolar entre “ciência e verdade” versus “mercado e propaganda”, como muitos nos levam a crer. Na verdade, o crescimento dessa diversidade espelha muito bem as tendências pós-modernas de fragmentação, relativização e “bricolagem” de discursos e práticas sociais.
Em outras palavras, podemos dizer que a auto-ajuda não é um erro ou acidente de percurso, mas uma expressão legítima da subjetividade na atualidade. Da psicanálise aprendemos que tudo o que é sintomático é índice de uma verdade que a consciência desconhece, mas que, no fundo a organiza. Portanto, minha hipótese é que essa situação de escalada da auto-ajuda não é circunstancial; pelo contrário, constitui um verdadeiro sintoma da configuração do campo psicológico tal como se deu na modernidade.

O espaço psicológico: território da ignorância
A história do campo nos mostra que o projeto da psicologia científica é fruto de uma determinada configuração sócio-histórica e político-econômica dos desdobramentos da modernidade ocidental, naquilo que Luis Cláudio Figueiredo (inspirado em Foucault) chamou de emergência e queda do sujeito/indivíduo moderno na produção dos saberes sobre a subjetividade. Essa configuração foi responsável pela criação de um espaço de saber "psicológico", marcado pela contradição e ambiguidade nas perspectivas éticas e epistemológicas a respeito do homem e de sua subjetividade. A ideia, como expliquei melhor em artigo anterior publicado nesta mesma revista (Cf. a matéria “A diversidade que nos une”) é que somente com a crise da concepção de sujeito e indivíduo moderno pôde surgir o projeto de uma psicologia científica. Esse espaço de dispersão foi a matriz geradora de todos os projetos das chamadas "psicologias" modernas e é marcado pela tensão entre três pólos de posicionamento ético com relação ao ser humano: o romântico, o iluminista e o disciplinar. O pólo iluminista concebe o homem como uma produção da razão e da vontade, dentro de uma perspectiva liberalista e individualista de sociedade. O pólo romântico concebe o homem como um potência expressiva e criativa que reencontra a unidade e a identidade das tradições (Natureza, Nação, Povo, Verdade, Deus...) por meio de uma comunhão afetiva. O pólo disciplinar, por sua vez, concebe o homem como objeto de um mecanismo de controle tecnocrático e burocrático no sentido da manutenção de uma pretensa ordem social racional e pública. Segundo essa perspectiva de Figueiredo, expressa em alguns de seus livros ("Matrizes do pensamento psicológico" e "A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação"), as diversas concepções epistemológicas e as diversas teorias psicológicas desenvolvem-se a partir de alianças e oposições a estas perspectivas éticas.
Isso quer dizer que as diversas psicologias nascem com a missão de lidar com o “resto” e com o “lixo” produzido pelas ordens institucionais modernas que se configuram no âmbito da família, da saúde, da educação e do trabalho. Cabe aos “psi” desenvolverem uma prática de controle e ação sustentada em um saber científico sobre as crianças mal-criadas e mal-educadas, os empregados mal-treinados e mal-selecionados, os doentes mentais mal-adaptados e assim por diante. Na sua tarefa de “reciclagem” e “tratamento” desse resíduo, os “psi” se apoiam em suas matrizes epistemológicas e posicionamentos éticos, que são múltiplos, diversos e contraditórios, criando assim um espaço de dispersão sem qualquer perspectiva de unificação.
Falei bastante disso no meu artigo anterior, a quem remeto o leitor interessado. O que eu trago de novo agora é chamar a atenção para o fato de que Luis Cláudio Figueiredo chama o espaço psicológico de território da ignorância. Isso porque o grau zero do espaço psicológico, ou seja, o ponto central de intersecção das bissetrizes dos seus vértices é nulo. Em outras palavras, o lugar de equidistância entre os discursos psicológicos, aquele em que todas as tensões incidem é, na verdade, um vazio. Isso quer dizer que a tentativa de produzir um discurso homogêneo sobre a subjetividade humana redunda em uma caracterização tão geral e inespecífica que se torna inócua e banal. É como se na tentativa de dar conta de todas as diferenças, acabássemos por ficar apenas com aquilo que é mais universal. Da mesma forma, entende-se que a riqueza dos saberes psicológicos está justamente na manutenção dessa tensão e dessa diversidade de perspectivas e posições, o que faz de qualquer empreitada psicológica, necessariamente, uma indisciplina crítica. Todas as grandes teorias psicológicas são importantes porque vão a fundo na exploração das possibilidades e limites de certa concepção do que seja o psiquismo humano. Sua força está justamente nessa especificidade e é o debate entre essas perspectivas antagônicas que mantém o espaço psicológico vivo e dinâmico.
Uma boa metáfora para caracterizar o espaço psicológico é a de um sistema atmosférico na forma de ciclone. Como se sabe, os grandes sistemas de tempestade têm essa forma característica de um redemoinho, daí a sua precipitação na forma de furacões e tornados. A força centrífuga do redemoinho gera ondas de choque intensas, que devastam tudo a sua volta. No entanto, o centro do sistema é estável e plácido, formando o chamado “olho” do furacão. Assim, no olho do furacão não há conflito de forças antagônicas, apenas a calmaria e a inércia do centro a qual todo o resto está referido. É uma imagem poderosa e que se apresenta na própria configuração da matéria no nosso universo, já que toda galáxia se organiza em configurações cíclicas por conta da força de um grande buraco negro que a mantém unida. No centro do caos, há o nirvana. Toda luz circula um poço de escuridão, assim como todo saber circunscreve uma ignorância fundamental sobre o humano.
A questão é que quanto mais os saberes psicológicos tentam dar conta de todos os pólos do espaço psicológico, mais eles adotam posturas ecléticas ou sintéticas que tendem a empobrecer a riqueza do "psicológico". Esse discurso de pretensa conciliação e eliminação das diferenças é encontrado nos mais diversos níveis da produção de discursos sobre o espaço psicológico, desde o senso comum da psicologia até a mais descarada literatura "marqueteira" de auto-ajuda. Não é à toa que o ponto de conjunção dos três pólos do psicológico - o centro geométrico deste espaço - é o lugar da total ignorância e imobilidade. Seria como o olho de um furacão - lugar de total inércia - ou o horizonte de eventos de um buraco negro - local de plena invisibilidade. Isso quer dizer o seguinte: qualquer perspectiva totalizadora na psicologia tende a se tornar completamente inerte e, ainda por cima, converter-se em pura ideologia.
Pois bem, o que tudo isso nos diz sobre o fenômeno da auto-ajuda? Como vimos, esse tipo de literatura se mantém pela reprodução desses chavões; do enunciado de pretensas verdades absolutas por meio de expedientes simples; de fórmulas mágicas que tudo resolvem imediatamente. Sem falar na falta de critérios e de sustentação, na mistura desatinada de apelos afetivos, índoles místicas, raciocínios pragmáticos e pretensas "técnicas" na explicação do sofrimento humano e em sua cura. O que eu gostaria de contribuir para essa discussão é na interpretação da estrutura desse discurso, que é, justamente, o que faz com que a auto-ajuda, como um simulacro, ocupe o centro do espaço psicológico, convertendo-se em ideologia que encobre sua própria ignorância.

A fórmula da auto-ajuda
O segredo é: existe uma verdade! Ela pode ser encontrada por qualquer um de nós, basta ter a atitude certa; basta querer e fazer a escolha certa. Essa verdade é garantida pela ciência e por todas as autoridades de legitimação de saber da cultura; é um caminho certo e garantido, basta dar o primeiro passo. Esse caminho depende de uma atitude afetiva, emocional e expressiva, pois não é um conhecimento racional, mas intuitivo, do mundo; é preciso, então, estar em sintonia com essa atitude do universo. Embora seja da ordem da intuitividade e da espontaneidade, existe uma "técnica" que pode ser ensinada, que é legitimada pela "ciência" e pelo "saber". Em suma: "Querer é poder. Basta tomar a atitude certa de sintonia com a verdade. A ciência garante!"
Ora, não é isso o mais perfeito exemplo da aliança entre os pólos liberal, romântico e disciplinar que configuram o espaço psicológico? Do pólo liberal temos a manutenção da ilusão de uma soberania do sujeito que é dono de sua razão, de sua vontade e de sua vida e, portanto, de seu destino. Esse é o maior apelo da auto-ajuda, inclusive: a ilusão narcísica que mesmo na maior crise de identidade eu possa sozinho resolver os problemas e me bastar. É a ilusão de que ainda sou sujeito ativo da minha vida. Mas essa vontade individual de nada adianta senão for respaldada por uma racionalidade instrumental impessoal e disciplinadora como o discurso da competência científica. Por isso, por mais que dependa da vontade do indivíduo, há a necessidade de um saber que garanta a verdade e ao qual se deve submeter em troca de amparo.  Esse é o segundo vértice, propriamente disciplinar, de submissão a um regime totalitário de controles impessoais e massificantes. Seu apelo também é forte, pois dá sentido de coletividade e de identidade em troca de uma servidão voluntária. Mas há ainda outro vértice, que é o da expressividade emocional propriamente romântica. Essa verdade não é uma da ordem de uma racionalidade universal, mas algo da ordem de uma potência criativa e singular. Há algo propriamente místico no sentido de uma comunhão com a totalidade que é fruto de uma jornada muito pessoal do sujeito. Então há também algo da ordem de uma passividade e de um caminho rumo a uma totalidade misteriosa que é mais afetiva do que a frieza calculista dos dispositivos disciplinares. Percebam que por mais que possam se articular, esses três pólos são antagônicos entre si, pois afirmam um homem que é simultaneamente ativo e passivo, autônomo e submisso, racional e afetivo, individual e coletivo, ou seja, todas as contradições que permeiam a subjetividade ao longo da história de nossa espécie. O problema é que os discursos de auto-ajuda tentam justamente formar uma totalidade homogênea nessa dinâmica de opostos e, com isso, se tornam perigosamente ideológicos e, por isso mesmo, extremamente sedutores.
Assim, podemos dizer que a literatura de auto-ajuda é nada mais que um simulacro da crise da constituição subjetiva da modernidade do qual todos nós somos herdeiros, inclusive a psicologia. Portanto, as psicologias e os discursos de auto-ajuda referem-se a um mesmo contexto sócio-histórico de origem, com a diferença que os segundos são uma versão mais homogênea e ideológica dos primeiros. Mas isso não quer dizer que as psicologias não sofram dos mesmos problemas que são explicitamente evidenciados nos discursos da auto-ajuda, pelo contrário, o que se observa cada vez mais é uma dissolução dessas fronteiras, na medida em que a sociedade pós-moderna do consumo, da informação e da performance avança. Mas por mais que avance, esse afã humano pela verdadeira e última verdade acaba sempre frustrado. Esse é o verdadeiro segredo da fórmula da auto-ajuda: é preciso manter o mistério e a ilusão a um palmo de distância, sempre a um triz de se esvanecer ou de se perder, como tudo o que é mágico.
Diferentemente do que havia auge da tecnocracia e da razão instrumental modernas, o mundo pós-moderno é marcado por uma busca pelo encanto perdido. Não é à toa que a literatura de fantasia está se renovando, assim como as paranoicas teorias da conspiração, sempre em busca de uma outra ordem simbólica por trás da realidade compartilhada do senso comum. É claro que aqui estamos falando do fenômeno dos livros de Dan Brown e seu paradigmático Código da Vinci, sobre a sociedade secreta que guarda o segredo da descendência de Jesus Cristo e de Maria Madalena, que alçou o gênero ao posto de ícone da cultura pop. Mas a demanda pelo reencantamento do mundo é um pouco anterior, coincidindo, inclusive, com o boom da auto-ajuda nos anos 1980. Foi nessa primeira leva de misticismo ilustrado e disciplinado que Umberto Eco, o famoso semiólogo italiano, escreveu o livro O Pêndulo de Foucault. Podemos dizer que os livros de Dan Brown e congêneres são uma versão fast-food da temática que é trabalhada de forma densa e extensa por Eco nas mais de 600 páginas de seu livro. Embora tenha um enredo muito mais complexo e uma perspectiva menos maniqueísta e mais irônica da questão, a temática é a mesma: os intricados meandros de um segredo guardado por gerações no seio de sociedades e seitas secretas; um segredo que pode desestabilizar toda a ordem vigente de poder nas instituições da cultura e na própria identidade do homem. Estão lá os maçons, os templários, a riqueza simbólica das cidades europeias e a inesgotável capacidade humana de buscar o sentido por trás de todo e qualquer acaso. O autor explora divinamente essa angústia existencial que acompanha toda a atividade hermenêutico-simbólica do homem que, no livro de Brown, é mera coadjuvante de um thriller de ação! Bem, não vou estragar a surpresa contando toda a história, apenas a sua moral...
A moral da história é que o segredo é: manter o segredo!
Sim, incrédulo leitor, o segredo nada mais é acreditar que há um segredo. É a crença e a fé de que o mundo se estrutura em torno de um sentido que nos move! O homem é um ser simbólico, habitado pela linguagem. Chegamos assim em uma segunda hipótese sobre o apelo da auto-ajuda: é um discurso que fomenta, instiga e mantém nossa ilusão constitutiva no mistério e no segredo. A auto-ajuda, em última instância, reassegura nossa crença de que há sentidos e que esse é o sentido da vida humana.
Somente mais contemporaneamente os filósofos e acadêmicos passaram a reconhecer que nossas culturas e nossas vidas nada mais são do que "instalações" do humano: moradas de símbolos que construímos em torno de nosso acaso constitutivo. Heidegger foi um dos pioneiros na chamada virada linguística e pragmática na filosofia, quando a moderna concepção de sujeito consciente e racional foi substituída por uma concepção menos autônoma e positiva do que seja a subjetividade humana. Em sua ontologia existencial, ele parte da concepção do ser (Dasein) como uma abertura e disposição para a significação, entendendo que a linguagem é o meio universal e constitutivo da experiência humana. Nessa perspectiva, o ser é fundamentalmente uma negatividade, aquilo que sempre transcende às possibilidades de nomeação e significação. Um herdeiro importante do pensamento de Heidegger é Lacan, que articulou a problemática da subjetividade a outro grande expoente das ciências da linguagem, o estruturalismo linguístico. Nessa perspectiva, temos uma inversão nos papéis tradicionais acerca do pensamento. Para o estruturalismo, a linguagem é que constitui o pensamento e as identidades. É o sentido da linguagem que recorta o mundo e nós nos constituímos passivamente por meio dessas operações simbólicas. Mais do que isso, o estruturalismo vai definir que o sentido da linguagem é um produto da diferença e que a significação não está nas coisas em si, mas nas relações que os significantes ou palavras estabelecem entre si a partir da estrutura simbólica universal. Essas transformações serão essenciais para uma ressignificação da própria concepção de sujeito na psicanálise. Lacan mostrará como o que é específico da condição humana é da ordem do desejo e a estrutura do desejo remete a nossa capacidade simbólica. Em suma, a concepção de que o desejo humano não tem um objeto específico, que ele é variável e fugaz, se alimentando de sua própria efemeridade. Toda a força do desejo é que ele nunca se realiza, pois quando se tem o que se deseja, subitamente aquilo perde a graça e o encanto passa a estar logo mais adiante. Portanto, o desejo não tem essência, não tem verdade última, não tem fim. A essência do desejo é o seu acaso e, portanto, ele é uma negatividade fundamental de onde podem brotar todos os nossos impulsos.
No final de sua obra, Lacan chamou de objeto a essa coisa fundamental que habita o humano como uma pulsação sem nome, como um furo em torno do qual gravita toda a subjetividade, tal qual a matéria envolve o buraco negro no centro da galáxia ou a tempestade circunda o olho do furacão. Estamos pois, de volta ao centro do espaço psicológico e ao território da ignorância. Por isso o discurso da auto-ajuda é tão poderoso, pois ele aponta, sem revelar para essa origem da condição humana e, com isso, traz amparo no desamparo. Mas existem tantas outras coisas podem igualmente permitir a elaboração desse desamparo: as religiões, a arte, o trabalho, o amor, a psicoterapia, etc.

A trágica condição humana
Depois desse percurso fica mais claro como a fórmula da auto-ajuda pode ser tão eficaz e verdadeira, uma vez que o segredo está em tocar a essência negativa da trágica condição existencial humana. Tentei argumentar que o discurso da auto-ajuda é uma espécie de reverso da lógica constitutiva do espaço psicológico da modernidade e, portanto, é um discurso legítimo e pertinente a nossa situação contemporânea, embora se preste muito mais ao alento da angústia do desamparo existencial e a saídas conformistas e passivas para o sofrimento. Portanto, nós, pós-modernos, temos muito a aprender com a crítica e interpretação dos discursos de auto-ajuda, na medida em que são sintomáticos de nossa subjetivação contemporânea. Contudo, o que faz desse gênero literário uma espécie de tentação é o seu apelo ao mais essencial de nossa condição humana, que é nossa capacidade simbólica universal.
Talvez por conta disso Lacan tenha remetido sua discussão sobre o símbolo às nossas origens culturais: a civilização grega. Ele foi buscar nos diálogos de Platão uma ilustração de nosso desejo. No seu Seminário 8, sobre a transferência, Lacan analisa O banquete, de Platão, buscando elucidar a origem do vínculo de desejo humano. Trata-se de um diálogo sobre o amor, onde Sócrates é cortejado por diferentes personagens masculinos. Toda a questão gira em torno do que é a essência do amor e ela converge para a ilustração de que o amor de Sócrates é como um ágalma. Ágalma é um objeto na forma de ornamento ou enfeite que guarda uma jóia ou presente. Era utilizado como oferenda aos deuses na Grécia Antiga e seu significado remete a essa distância que se coloca entre o verdadeiro objeto e aquilo que se apresenta.  Na trama do diálogo de Platão, a interpretação Lacan acaba construindo é a de que esses objetos representam aquilo que guarda um segredo que produz submissão às ordens daquele que os possui, de forma tal que o véu que esconde a essência é o verdadeiro encanto, sendo o objeto derradeiro descartável. Uma boa metáfora para a noção de ágalma é compará-lo àquelas bonequinhas artesanais da cultura russa, as matrioskas: uma série de bonecas que se encaixam umas dentro das outras. Pois bem, o efeito do ágalma é o que abrir essas bonecas proporciona, são camadas e camadas até se encontrar o nada. Não há objeto último, a casca é a própria coisa!
Portanto, esse é o segredo da real e trágica condição humana que se expressa, de forma massificada, pausterizada e comercializada na literatura de auto-ajuda. Em tempo: o referido "Pêndulo" foi desenvolvido pelo físico auto-didata francês "Leon Foucault" na metade do século XIX e constituiu o primeiro experimento científico a comprovar a hipótese de que a terra gira em torno do seu eixo. Linda metáfora para ilustrar nosso constitutivo devir simbólico, não?

Bibliografia

FIGUEIREDO, L. C. A invenção do psicológico: quatro séculos de subjetivação. São Paulo: Escuta/Educ, 1992.
FIGUEIREDO, L. C. Escutar, recordar, dizer: encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica. São Paulo: Escuta/EDUC, 1994.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2005
LACAN, J. O Seminário, livro 8 - A transferência (1960- 1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
PLATÃO. O Banquete. 5. ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1991.
ECO, Umberto. O Pêndulo de Foucault. Rio de Janeiro: Record, 1989.

* Érico Bruno Viana Campos é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É professor assistente doutor do departamento de psicologia da UNESP Bauru. Site pessoal: https://sites.google.com/site/ebcamposonline/. Blog: http://interpretacoesdacultura.blogspot.com.br/

domingo, 3 de março de 2013

A Diversidade da Psicologia (Matéria Revista Psicologia - Editora Mythos)


A Diversidade que Nos Une * 

A pluralidade de perspectivas dentro da psicologia não é um acidente, mas o reflexo da própria natureza dos saberes e práticas psicológicas. Compreender essa diversidade é fundamental para a formação e atuação do profissional da área.

Por Érico Bruno Viana Campos

Tributária em sua origem de dois projetos substancialmente opostos – enquanto ciência natural e enquanto ciência social –, a psicologia como campo de saberes e práticas se constituiu e se desenvolveu caracteristicamente a partir da pluralidade de perspectivas, muitas vezes inconciliáveis. Aos olhos do senso comum, a multiplicidade de abordagens científicas costuma sugerir imaturidade, falta de rigor ou mesmo a falsidade do seu conhecimento e de seus métodos. Mas o campo da psicologia revela justamente o limite desse tipo de olhar, mostrando que os fenômenos humanos são de outra ordem de complexidade, em que a diferença (e não a identidade) é a tônica.

Duas versões da história
A psicologia é um campo de saber relativamente recente. É fruto derradeiro do movimento de constituição das ciências humanas e sociais ao longo do século XIX na cultura ocidental moderna, trazendo a marca das contradições e da crise dessa concepção de homem.
Em uma perspectiva mais tradicional da história da psicologia, que ainda é base para o senso comum, se caracteriza a psicologia (e também a psiquiatria) como um triunfo iluminista e científico sobre as trevas das crendices populares e especulações filosóficas. Seria algo como a aurora de um novo tempo em que a aplicação rigorosa do método científico garantiria o conhecimento da verdade e indicaria estratégias e técnicas de intervenção sobre os fenômenos psíquicos e relacionais humanos. Nessa perspectiva positivista e progressista ingênua, a diversidade do campo psicológico seria um acidente de percurso, uma anomalia temporária que tenderia a ser eliminada na medida em que o crivo da aplicação do método científico pudesse constituir uma teoria universal e unificada dos fenômenos psicológicos.
Contudo, essa versão da história não condiz com os fatos. Desde seu nascimento, o campo psicológico é marcado por iniciativas contraditórias e opositivas. Assim, os projetos de psicologia enquanto ciência natural - os estudos sobre senso-percepção, memória e aprendizagem que marcam o início da psicologia moderna – foram simultaneamente acompanhados de movimentos de contestação desses projetos e instauração de outras perspectivas de psicologia não alinhadas com essa concepção de ciência objetiva e natural. Portanto, o início da psicologia traz não só os estudos experimentais e as avaliações psicológicas - os famosos testes psicológicos - mas também estudos que priorizam outra abordagem do fenômeno psicológico; uma concepção em que este é fundamentalmente de natureza subjetiva e da ordem da significação e da cultura, ou seja, os fenômenos psicológicos são fundamentalmente simbólicos e históricos, não podendo ser objetivados e explicados, mas sim interpretados e compreendidos.
Nada mais paradigmático dessa contradição intrínseca do que a posição daquele que é considerado o primeiro psicólogo – Wilhelm Wundt. Formado na tradição experimental da fisiologia, ele foi responsável pela montagem do primeiro laboratório de psicologia experimental na universidade de Leipzig, em 1879. Mas o que pouca gente lembra é que além dessa abordagem experimental dos fenômenos elementares da consciência, que formará a base da primeira escola da psicologia (o estruturalismo), o autor também preconizava que os fenômenos psicológicos complexos – interações sociais, ideais culturais, etc. – deveriam ser abordados por meio de um método histórico-compreensivo mais próprio das ciências humanas, que ele chamou de “Psicologia dos Povos”.
Bem, mas essa discussão que incide no campo da psicologia nascente é clássica na origem de todas as ciências humanas. De qualquer forma, podemos reconhecer que o campo psicológico surgiu marcado por uma cisão clara: de um lado os projetos de ciência natural e do outro os de ciência humana. Essa cisão nos acompanha até hoje e um aspecto ilustrativo disso é  a eterna discussão sobre se os cursos de psicologia devem ser classificados na área de ciências naturais ou na humanas. Essa contradição foi muito bem capturada por um historiador brasileiro da psicologia, Hilton Japiassu, ao afirmar que a psicologia é marcada por um paradoxo, pois se ela se esforça demais para ser ciência, ela perde seu objeto e se ela tenta resguardar em demasia a singularidade de seu objeto, ela deixa de ser ciência.
Entretanto isso não é tudo, pois podemos ficar com a impressão que a psicologia teria apenas dois modelos de ciência a seguir. Na verdade, o que se entende mais claramente hoje é que a psicologia é expressão dessa própria crise da subjetividade. Por isso os autores que seguem essa perspectiva mais crítica da história da psicologia entendem que o espaço de saberes e práticas psicológicas é um espaço de dispersão sem perspectiva de unificação, ou seja, uma constelação ou arquipélago de modelos teórico-metodológicos e de configurações práticas que não são passíveis de solução, pois guardam contradições entre si. São contraditórios porque defendem posições completamente diferentes com relação ao que é o fenômeno psicológico humano e, por conseguinte, ao que devemos priorizar como ideal na construção do que é o ser humano. Isso faz sentido porque cada vez mais os filósofos e epistemólogos da ciência estão convencidos que o objeto do conhecimento não é objetivo e concreto, mas construído socialmente. Portanto, o homem, a natureza e o conhecimento não estão dados de antemão; eles não existem por si mesmos, são construções sócio-culturais.
Isso quer dizer que em uma perspectiva mais recente sobre a história da psicologia, não há mais a ilusão essencialista sobre o fenômeno psicológico, ou seja, que ele exista naturalmente, como uma coisa independente, com leis universais e intemporais. Por isso, aquela primeira visão da história da psicologia é ilusória e parcial. Dependendo da posição que ocupam no campo das teorias e práticas, os críticos poderão chamá-la de ingênua ou mesmo de ideológica ou perversa.
A partir disso, seria mais correto falar de “psicologias”, no plural, ou ainda de um campo ou espaço psicológico, onde reinam diferentes teorias e práticas que tem um contexto comum sócio-cultural e histórico comum. Isso quer dizer que todos eles, por mais diferentes que sejam em termos metodológicos, epistemológicos e mesmo éticos, se configuram a partir de um mesmo conjunto de circunstâncias, para dar conta, de formas diferentes, de certa problemática ou questão que se circunscreve no final do século XIX. Mas que problemática é esta?

Um contexto comum
A problemática é a seguinte: os diferentes projetos de psicologia surgem como uma forma de responder à crise da subjetividade moderna. Todos eles são fruto da crise da concepção propriamente moderna de homem, aquela que afirma que o homem é sujeito de sua história; dotado de razão, vontade e liberdade; soberano de seu corpo e de sua individualidade; cujo domínio mais significativo é sua intimidade privada de emoções e pensamentos. Pode parecer óbvio para o leitor tudo isto, mas só porque ainda nos vemos assim a ponto de não colocar esses pressupostos culturais em questão. Mas o fato é que a demanda por uma ciência psicológica só pode surgir quando começaram a aparecer as primeiras fraturas nessa concepção de uma vontade e consciência soberanas como fundamento racional do homem. Só quando a ideologia iluminista e as utopias sociais modernas (a revolução burguesa em suas facetas econômica e política, ou seja, a constituição dos estados nacionais, a revolução industrial e as revoluções democráticas) se mostraram ilusórias, é que surge a demanda por um saber propriamente psicológico. Portanto, as ciências psicológicas surgiram como uma tentativa de desenvolver um conhecimento a respeito do sujeito moderno que pudesse intervir sobre a crise dessa concepção de subjetividade e de individualidade. Utilizaram para isso as ferramentas metodológicas e epistemológicas de uma grande instituição cultural que é especificamente moderna: a ciência. Então, diferentes psicologias surgem para tentar dar conta da crise do humano, tentando restaurar e instituir certa concepção de homem por meio de seus paradigmas teóricos e técnicos.
É assim que surgem os projetos de psicologia como ciência natural e como ciência humana, marcados por grandes polaridades ideológicas próprias do contexto sócio-cultural da modernidade: o liberalismo, o individualismo, o romantismo, os controles disciplinares, etc. Esse é, inclusive, outro ponto que merece destaque. O contexto sócio-histórico de crise da subjetividade moderna foi marcado por algumas ideias a respeito do homem que se configuraram ao longo dos grandes movimentos culturais que marcaram a civilização ocidental entre os séculos XV e XIX: o renascimento, o iluminismo e o romantismo, além das várias facetas dos chamados regimes disciplinares, tais como o utilitarismo, a tecnocracia, a razão instrumental, etc. Esses movimentos marcaram posições acerca do que deveria ser valorizado e promovido no ser humano como sua característica distintiva, configurando propriamente um conjunto de éticas que passaram a fundamentar os projetos das psicologias nascentes. Isso quer dizer que além de uma vinculação com um projeto de ciência e de conhecimento, as psicologias também são marcadas por diferentes concepções éticas sobre o que é a subjetividade humana.

Portanto, a diversidade das psicologias não se refere somente ao âmbito do conhecimento, mas também aos interesses éticos e políticos que estão atrelados a esse conhecimento. Essa perspectiva está mais próxima das discussões contemporâneas na filosofia da ciência que reconhecem que as teorias científicas não são neutras, como ainda se acredita no senso comum, pois fomentam e justificam certas concepções sobre o que é o humano e, portanto, refletem sobre as próprias práticas sociais. Isso faz com que a questão da verdade não seja suficiente para uma discussão sobre o valor das teorias e práticas psicológicas. A discussão precisa se dar também no âmbito de que posições éticas e políticas essas teorias sustentam. Nesse sentido, a esperança de uma unificação de teorias e práticas ou, pelo menos, de uma orientação comum do campo psicológico se desfaz completamente.
Essa tese foi claramente exposta, trabalhada e divulgada por um dos maiores autores de história da psicologia no Brasil, Luis Cláudio Figueiredo, e vem no esteio da historiografia crítica contemporânea, que tem influências pós-estruturalistas e marxistas. Não vem ao caso entrar em detalhes, mas é preciso reconhecer que autores como ele mudaram a forma de se pensar a história da psicologia no Brasil a partir do final dos anos 1980, descolando-se de vez daquela tradição norte-americana ultrapassada que costuma entender que a Psicologia Moderna é sinônimo dos projetos de psicologia científica.
Isso tudo quer dizer que hoje se entende mais claramente que a "psicologia" não foi fruto de um progresso inevitável da ciência moderna, mas ela é um campo constituído ao longo de um processo sócio-cultural e histórico bastante singular. Nesse sentido, o psicológico, quer seja como experiência subjetiva, quer seja como campo de conhecimento científico, foi uma invenção moderna. Invenção esta, por sua vez, que configura um espaço de teorias e práticas completamente heterogêneo. Tão heterogêneo que não contempla somente o que se convencionou chamar de "Psicologia(s)", mas também outras teorias e práticas que são mais ou menos reconhecidas como campos de conhecimento, práticas e mesmo profissões. Assim, quando falamos que o espaço psicológico emerge na crise da modernidade, queremos dizer que nele emergem não só as diferentes psicologias, mas também a psiquiatria e a psicanálise, sem falar em outras práticas e doutrinas menos reconhecidas como, por exemplo, muitas das chamadas "terapias alternativas" e das "auto-ajudas".
No limite, portanto, podemos dizer que a "Psicologia" não existe, que não é uma identidade unitária. Ela é antes um espaço contraditório que se circunscreve nas fronteiras entre diversas posições quanto ao fenômeno humano e também na interface com outros campos de saber.

Consequências para a Formação
            Ao longo desse texto pudemos apresentar as questões concernentes à história da psicologia que fazem desse campo um espaço de dispersão de conhecimentos e de posições éticas sem perspectivas de unificação. Conhecer essa história é fundamental para a formação do psicólogo não só porque permite ao profissional conhecer a diversidade desse campo, mas tirar dela uma grande lição: o reconhecimento de que nenhum saber ou prática psicológica pode se asseverar uma posição de verdade absoluta, ou seja, que dê conta de toda a complexidade dos fenômenos psicológicos. Mais do que isso, precisa reconhecer que toda teoria ganha sua identidade a partir da exclusão de certas dimensões do campo psicológico e que há sempre algo da ordem de um inconsciente no horizonte de todas as psicologias.
            Isso quer dizer que o profissional de psicologia precisa lidar com a condição permanentemente em crise de seu saber e de seus instrumentos. Essa não é uma tarefa fácil, trazendo muita angústia ao profissional em formação por não ter garantias de certeza em relação a suas escolhas teóricas e técnicas. Há duas formas clássicas de lidar com essa angústia, que levam a duas posturas profissionais distintas no campo da psicologia. A primeira é a postura dogmática, em que o profissional se aferra de forma doutrinária aos referenciais de sua escolha, sem se preocupar com qualquer outro referencial teórico ou prático. Na verdade, muitas vezes essa postura leva a uma hostilidade e rivalidade com outros referenciais, como se apenas uma abordagem pudesse ser válida ou verdadeira. A segunda postura é a eclética, em que o profissional adota uma posição contrária, sem se identificar com nenhuma abordagem específica, utilizando de vários referenciais distintos a depender de sua intuição pessoal, da demanda do cliente ou da conveniência da situação. Trata-se de uma posição fundamentalmente pragmática, ou seja, baseada na concepção de que é válido o que funciona. Se a primeira postura se identifica com uma verdade única, a segunda abre mão de qualquer verdade ou rigor. Ambas são estratégias diferentes de lidar com a angústia de ter de responder individualmente aos impasses e incertezas do campo psicológico. Uma postura mais madura é aquela que assume a complexidade do campo e toma uma posição propriamente crítica, ou seja, que considera legitimamente as contradições e limites das teorias e práticas, tomando para si a tarefa de construir uma resposta singular às demandas da situação. Nessa postura, o profissional tem uma maior responsabilidade, pois seus instrumentos e referenciais precisam passar por uma apropriação pessoal para que se possa de fato criar estratégias de pensamento e intervenção.
Como se pode perceber, uma postura crítica e fruto de uma posição ética fundamental: o reconhecimento que as verdades não estão dadas e acabadas, mas que precisam ser construídas, conquistadas e defendidas com responsabilidade. Portanto, a formação do psicólogo exige que o profissional seja, sobretudo, um sujeito “responsável”. Mas a responsabilidade aqui não é apenas a obediência ou referência a um código de conduta profissional ou a preceitos morais sociais, mas ao próprio fundamento ético de todo ato humano.
Na mitologia grega, a história do centauro Quíron é uma ilustração das habilidades de cuidado e de cura. Sua capacidade terapêutica estava intimamente relacionada ao seu desamparo. Este se configurava pelo seu abandono de origem e pelo fato de ele próprio ser portador de um ferimento incurável causado por uma flecha envenenada. Era essa ferida aberta, produzindo um sofrimento constante, que lhe dava tão especial sensibilidade e conhecimento ao lidar com a dor do outro. Ou seja, para curar é preciso entrar em contato com sua própria dor.
A história da psicologia nos ensina que o campo psicológico é um lugar de certezas parciais, tal como a própria condição de nossa subjetividade. Somente com o reconhecimento da fragilidade de nossos instrumentos e da diversidade de nossos olhares é que podemos responder autenticamente à delicada tarefa de cuidar do sofrimento humano.

Bibliografia
FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Ed. rev. amp. São Paulo: Educ; Petrópolis, Vozes, 1996.
FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2003.
JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; PORTUGAL, Francisco Teixeira. História da psicologia: rumos e percursos. 2. ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2007.
JAPIASSU, H. Introdução à epistemologia da psicologia. 5. ed. rev. amp. São Paulo: Letras e Letras, 1995.
SANTI, P. L. R. A construção do eu na Modernidade: uma apresentação didática. 2. ed. Ribeirão Preto: Holos Editora, 1998.
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* Matéria publicada na Revista Psicologia da Editora Mythos, n. 3. O autor é Psicólogo, mestre e doutor em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Professor assistente doutor do departamento de psicologia da UNESP Bauru. Site pessoal: https://sites.google.com/site/ebcamposonline/. Blog: http://interpretacoesdacultura.blogspot.com.br/