sexta-feira, 4 de março de 2011

Balizas de Leitura em uma Biblioteca Infinita de Signos



Divulgação
Professor de Literatura e Psicanalista francês desenvolve belo ensaio de crítica literária discutindo de forma irônica uma questão pragmática: "Como falar do que não lemos?"

Em meio a tantas publicações que inundam as livrarias e as telas de computador nesses tempos hiper-modernos em que informação e conteúdo são tudo, não há como não se sentir como um personagem de Borges, perdido em alguma biblioteca infinita de livros portadores de textos ininteligíveis. Paradoxalmente, nunca tivemos tanto acesso ao conhecimento, mas a sensação de que tudo escapa por entre nossos dedos e se torna ultrapassado é constante e insistente.

O livro de Pierre Bayard, Como falar dos livros que não lemos (Objetiva, 2008), é um achado precioso em meio a tantos livros que falam de nada ou que se propõem a falar de tudo. O título é pretensioso e a imagem da capa não deixa dúvidas quanto à tentação de desvendar uma "chave de leitura" mágica que possa sustentar-se diante dos labirintos herméticos da linguagem e do saber. Sim, porque por mais contemporâneos que possamos ser, ainda permanecemos encantados e submetidos ao jugo do saber que emana dos livros, estes guardiões da cultura e insígnias de erudição. Não é à toa que a literatura de auto-ajuda está aí, para vender segredos palatáveis em suas ilusões de grandeza e domínio. Saber é poder, já dizia Foucault. A sedução, portanto, é clara. Folheando o livro, encontramos elementos clássicos de um livro desse naipe: uma classificação da qualidade dos livros citados com base no nível de leitura (de "apenas folheado" ou "lido rapidamente" até "nunca ter ouvido falar", mas excluindo qualquer possibilidade de apreensão integral) e uma divisão em partes e capítulos com títulos afirmativos e esclarecedores como "Maneiras de Não Ler", "Condutas a Adotar" e etc. Portanto, o livro de Bayard tem tudo para ser uma auto-ajuda... Mas não é! Está aí a sua preciosidade.


Confesso que na primeira vez em que vi o livro cai no engodo e apenas dei um sorriso complacente: "mais um compêndio de dicas de retórica para se auto-promover!" É bem verdade que na vida acadêmica há muito de retórica na sustentação do que os lacanianos consagraram como o "suposto saber", mas que os alunos mais aptos logo aprendem a discernir como "embromation" ou, em uma versão ainda mais escrachada, "fazer carão". Infelizmente, que seja pelos desobramentos da cultura contemporânea, quer seja pela má formação de professores e alunos, cada vez mais se valoriza a performance e o semblante no lugar de algo que costumava se chamar de sabedoria em essência. Bem, os essencialismos estão realmente fora de moda, mas isso não quer dizer que a alternativa seja uma colagem imaginária perversa, em que as palavras soam fetichizadas como meros atributos de poder. Em outras palavras, a discursividade contemporânea cada vez mais é uma retórica da persuasão e de atribuição de insígnias de status social: "manipule o jargão, faça o carão e blend in... Imagem é tudo!" Como já dizia Marx, na modernidade tudo que é sólido desmancha no ar.


Pois bem, voltando para nosso mote: ainda existe uma diferença entre a pura embromação, semblante de saber, e uma boa formação, que permite situarmo-nos em uma rede de conceitos e posições que estrutura uma determinada região da cultura, no caso, a acadêmica científica ou literária.O que Bayard faz sutilmente e ironicamente é deslindar em pequenos ensaios uma determinada compreensão do que é a experiência da linguagem e de como ela se articula na constituição de uma cultura própria. Como bom amante das teorias da linguagem que deve ser (afinal é francês, psicanalista e literato!), o autor faz de forma elegante e sem grandes rasgos de erudição a apresentação de uma tese que é fundamental para a lingüística e para a psicanálise contemporânea: o sentido se articula na diferença e, portanto, o domínio da linguagem e de uma cultura semiótica (de signos) se dá não por um conhecimento elementar dos seus componentes individuais, mas pela estrutura geral de articulações entre os elementos, criando remissões, tradições e horizontes de sentido com os quais as obras dialogam e nos quais se inserem. Em outras palavras, um livro não é uma obra sozinho, mas somente na relação com a tradição a que pertence. Um bom domínio dos marcos referenciais dos campos de saber possibilita julgar muito do conteúdo de um livro e de sua contribuição mais geral. Um bom professor e um bom leitor são aqueles que habitam essa tradição e podem produzir a diferença em sua apreensão da obra, ou seja, é preciso também se distanciar daquilo que se lê para poder conhecer melhor. É nesse duplo sentido que a leitura integral é uma falácia e a verdadeira leitura tem algo de uma "não-leitura"!


Os textos são pequenos ensaios que partem de grandes obras de literatura e de cinema, desenvolvendo com maestria a estranheza de ver grandes autores defendendo a não-leitura de forma mais ou menos descarada e problematizando a atividade de leitura e o significado do livro. Assim vemos Oscar Wilde, Umberto Eco e Voltaire sendo trazidos à baila para justificar pequenas fórmulas que servem de epígrafe didáticas aos capítulos, como "Onde o leitor verá que é menos importante ler este ou aquele livro, o que é uma perda de tempo, do que ter sobre a totalidade dos livros aquilo que um personagem de Musil chama de uma “visão de conjunto”." Ou, ainda, o recurso a sugestão de estratégias clássicas do arsenal da auto-ajuda e na linha do Como fazer amigos e influenciar as pessoas, que se mostram mais do que meras estratégias retóricas e expressam aspectos interessantes da prática discursiva, como, por exemplo,  "não ter vergonha", "impor as próprias idéias", "inventar os livros" e "falar de si". O que é mais interessante no livro é esse olhar sutilmente irônico, que não cai nem na descarada fundamentação da retórica na ciência nem em uma total desconstrução desse tipo de ideologia pelo criticismo acadêmico. Dai a ambigüidade que dá a tônica do texto e envolve o leitor até o fim, capturado nessa transitividade entre modos discursivos. Levar o sentido de um discurso até o fim e ver ele se transformar em seu contrário, eis o absurdo da verdadeira ironia. Nesse sentido, Bayard é um mestre da ironia e desenvolve um humor inteligente dentro de uma escrita fina e ágil.  


Por tudo isso o autor se mostra bem-sucedido na tarefa de mostrar essa discussão hermenêutica sobre a leitura e produção de textos ironicamente embalada em um formato fast food. Não se enganem. Trata-se de um prato saboroso que deve ser deliciado com calma e que nos deixa a desejar. Portanto, é um livro mais do que recomendado para nos lembrar que conteúdo não é sentido e que consumo não é desejo. 

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