Confesso que na primeira vez em que vi o livro cai no engodo e apenas dei um sorriso complacente: "mais um compêndio de dicas de retórica para se auto-promover!" É bem verdade que na vida acadêmica há muito de retórica na sustentação do que os lacanianos consagraram como o "suposto saber", mas que os alunos mais aptos logo aprendem a discernir como "embromation" ou, em uma versão ainda mais escrachada, "fazer carão". Infelizmente, que seja pelos desobramentos da cultura contemporânea, quer seja pela má formação de professores e alunos, cada vez mais se valoriza a performance e o semblante no lugar de algo que costumava se chamar de sabedoria em essência. Bem, os essencialismos estão realmente fora de moda, mas isso não quer dizer que a alternativa seja uma colagem imaginária perversa, em que as palavras soam fetichizadas como meros atributos de poder. Em outras palavras, a discursividade contemporânea cada vez mais é uma retórica da persuasão e de atribuição de insígnias de status social: "manipule o jargão, faça o carão e blend in... Imagem é tudo!" Como já dizia Marx, na modernidade tudo que é sólido desmancha no ar.
Pois bem, voltando para nosso mote: ainda existe uma diferença entre a pura embromação, semblante de saber, e uma boa formação, que permite situarmo-nos em uma rede de conceitos e posições que estrutura uma determinada região da cultura, no caso, a acadêmica científica ou literária.O que Bayard faz sutilmente e ironicamente é deslindar em pequenos ensaios uma determinada compreensão do que é a experiência da linguagem e de como ela se articula na constituição de uma cultura própria. Como bom amante das teorias da linguagem que deve ser (afinal é francês, psicanalista e literato!), o autor faz de forma elegante e sem grandes rasgos de erudição a apresentação de uma tese que é fundamental para a lingüística e para a psicanálise contemporânea: o sentido se articula na diferença e, portanto, o domínio da linguagem e de uma cultura semiótica (de signos) se dá não por um conhecimento elementar dos seus componentes individuais, mas pela estrutura geral de articulações entre os elementos, criando remissões, tradições e horizontes de sentido com os quais as obras dialogam e nos quais se inserem. Em outras palavras, um livro não é uma obra sozinho, mas somente na relação com a tradição a que pertence. Um bom domínio dos marcos referenciais dos campos de saber possibilita julgar muito do conteúdo de um livro e de sua contribuição mais geral. Um bom professor e um bom leitor são aqueles que habitam essa tradição e podem produzir a diferença em sua apreensão da obra, ou seja, é preciso também se distanciar daquilo que se lê para poder conhecer melhor. É nesse duplo sentido que a leitura integral é uma falácia e a verdadeira leitura tem algo de uma "não-leitura"!
Os textos são pequenos ensaios que partem de grandes obras de literatura e de cinema, desenvolvendo com maestria a estranheza de ver grandes autores defendendo a não-leitura de forma mais ou menos descarada e problematizando a atividade de leitura e o significado do livro. Assim vemos Oscar Wilde, Umberto Eco e Voltaire sendo trazidos à baila para justificar pequenas fórmulas que servem de epígrafe didáticas aos capítulos, como "Onde o leitor verá que é menos importante ler este ou aquele livro, o que é uma perda de tempo, do que ter sobre a totalidade dos livros aquilo que um personagem de Musil chama de uma “visão de conjunto”." Ou, ainda, o recurso a sugestão de estratégias clássicas do arsenal da auto-ajuda e na linha do Como fazer amigos e influenciar as pessoas, que se mostram mais do que meras estratégias retóricas e expressam aspectos interessantes da prática discursiva, como, por exemplo, "não ter vergonha", "impor as próprias idéias", "inventar os livros" e "falar de si". O que é mais interessante no livro é esse olhar sutilmente irônico, que não cai nem na descarada fundamentação da retórica na ciência nem em uma total desconstrução desse tipo de ideologia pelo criticismo acadêmico. Dai a ambigüidade que dá a tônica do texto e envolve o leitor até o fim, capturado nessa transitividade entre modos discursivos. Levar o sentido de um discurso até o fim e ver ele se transformar em seu contrário, eis o absurdo da verdadeira ironia. Nesse sentido, Bayard é um mestre da ironia e desenvolve um humor inteligente dentro de uma escrita fina e ágil.
Por tudo isso o autor se mostra bem-sucedido na tarefa de mostrar essa discussão hermenêutica sobre a leitura e produção de textos ironicamente embalada em um formato fast food. Não se enganem. Trata-se de um prato saboroso que deve ser deliciado com calma e que nos deixa a desejar. Portanto, é um livro mais do que recomendado para nos lembrar que conteúdo não é sentido e que consumo não é desejo.
Muito bom o texto, não conheço a obra de Bayard agora fiquei curioso. Uma coisa que venho pensando já a algum tempo é a respeito da orientação dessas três palavras: informação, conteúdo e conhecimento. Penso que a relação entre as três é um caso delicado, já encontrei sendo utilizadas como sinônimos e isso deve ter conseqüências a cerca do que se produz nas relações com o mundo.
ResponderExcluirNós podemos dizer que encontramos informações com muito, com pouco, ou sem qualquer conteúdo, podemos? Podemos dizer que qualquer informação é conhecimento de algo? Conhecer não soa como algo tão “transcendente”, por exemplo: "Eu conheço fulano" isso supõe que "eu" tenho o domínio sobre a essência da gênese do outro e não somente isso como também prevejo toda sua complexidade transformativa. O conhecimento é uma palavra que designa “o saber” ou “algum saber”?
As vezes minha ignorância reflexiva, ou mesmo hermenêutica, me força a acreditar que na hiper-modernidade, os livros estão desempregados, a ironia da filosofia grega virou lenda, o principio da dualidade oriental tornou-se mais uma tatuagem em algum catalogo, e a ética entrou na puberdade.
É, meu caro, você tem razão, tudo se volatiza!
ResponderExcluirQuanto às palavras, acho que a principal diferença é entre informação/conteúdo e o conhecimento que advém de nossa atividade de produção simbólica, ou seja, em outros termos o nosso regime de produção de sentidos. A significação abre para uma linguagem que não é unívoca e objetiva, como se supõe ser a "informação", mas nos coloca no campo poético e ambíguo das metáforas.