sexta-feira, 1 de abril de 2011

Baraka: O Sopro da Vida e o Encanto dos Sentidos


Documentário filmado em 24 países dá uma aula sobre o poder dos símbolos na vida humana.


Baraka é uma palavra sufi que significa algo como o sopro ou a pulsação da vida. É um nome bastante adequado para o documentário "experimental" americano de Ron Fricke (1992),  cinematografista que trabalhara em um projeto similar de filme sem narrativa que articulasse diversas imagens da natureza e das diversas culturas humanas, conhecido como trilogia Qatsi. Mais do que um mero filme étnico ou representante de certo "world cinema", Baraka é uma obra de arte sensível que nos captura e nos convida para um distanciamento estético em relação à essência do ser humano.


A característica distintiva deste filme como obra de arte é que se trata de uma colagem  sem qualquer narrativa estruturada. Não há enredo, não há um narrador que medeie a absorção e interpretação das imagens que são apresentadas. Há apenas uma música instrumental incidental de fundo e os sons da vida natural e cultural. No entanto, é justamente esse silenciamento da linguagem falada que provoca o estranhamento característico da experiência estética do filme. Ao calar, o filme liberta uma profusão de sentidos, deixando o espectador à mercê de seus próprios devaneios e interpretações. Tal como o eclipse que aparece com destaque no cartaz do filme, o silêncio põe em suspenso a clareza da linguagem e nos permite tomar distância em relação aquilo que, de tão claro, torna-se invisível: o fato de sermos seres cuja linguagem é o meio universal da experiência.

Curiosamente, a experiência fundamental que Baraka proporciona não é a do "puro" olhar. Por mais impressionante que sejam as imagens do filme, não se trata do lugar comum presente no ditado que afirma que "uma imagem vale mais do que mil palavras". O fato de não termos fala pode nos iludir que estamos apenas observando a realidade, mas o fato é que o silêncio das palavras apenas permite que uma outra linguagem se articule: a semiótica das imagens.

Na história das artes, é conhecido momento inicial de preconceito dos artistas e críticos em relação à fotografia. Um dos maiores detratrores da fotografia como forma de expressão artística foi o poeta e escritor francês Charles Baudelaire. Para ele, assim como para a maioria dos outros, a fotografia constituiria uma mera reprodução da realidade empírica e não uma expressão ou construção de sentido sobre a mesma. Ela seria meramente a fixação de imagens, permitindo uma duplicação e cópia da realidade. Não haveria ali lugar para a invocação de sentido própria da expressão artística e da experiência estética. Ora, o que esses críticos  esqueceram e que posteriormente foi ficando cada vez mais claro é que a técnica fotográfica permitia um distanciamento da imagem por meio de sua reprodução da realidade. Mais ainda, ela permitia um recorte e um testemunho concreto e estático de uma realidade que se apresentava como puro devir temporal. Pois bem, ao recortar a totalidade da realidade e representá-la por uma imagem, a fotografia permite um distanciamento interpretativo que cria sentidos. A foto não é a realidade, mas um parte da realidade representada e que, portanto, é dotada de intencionalidade e de significação. O enquadramento, a luz, e diversas outras características da fotografia nos invocam sentidos que estão para além da afetação natural que esses fenômenos visuais nos provocam. O fato de estar ali, reproduzido, concretizado, encarnado de intencionalidade humana nos faz interrogar sobre o sentido que se esconde por trás da mera imagem.

Esse fenômeno, que já é pregnante na experiência fotográfica, se amplia de forma considerável na experiência cinematográfica. Pode parecer que a experiência visual de um filme seja mais real, porque se desdobra no tempo, porque traz imagens encadeadas "naturalmente" ou porque nos dá a sensação de "imersão". Mas isto também é ilusório. O essencial da arte do cinema está na articulação das diversas imagens na criação de um enredo e de uma narrativa que se sustente em sua própria linguagem.  Como todos sabem, trata-se de uma história contada por meio de imagens. A fotografia, a edição, os diálogos e a trilha sonora compõe uma trama complexa de vários níveis de sentido que, contudo, parecem "reais". No entanto, há um distanciamento entre a poltrona e a imagem na tela,  uma verdadeira certeza ontológica  do caráter imaginário da vivência, que justamente permite e sustenta a ilusão da experiência estética cinematográfica.

Podemos então dizer que a linguagem está encarnada no olhar e que se uma imagem vale mais do que mil palavras é só porque uma imagem pode suscitar mais invocações de sentido do que uma única palavra e também porque a imagem tem um poder a mais de sedução porque concretiza e materializa o sentido dos atos de linguagem.

Por causa de suas características estruturais e de sua temática geral, Baraka  nos convida a pôr em suspenso os sentidos que atravessam e constituem nosso cotidiano, assumindo uma postura de reconhecimento e de contato com a alteridade dos fenômenos humanos que nos rodeiam. Essa atitude ética fundamental é o ponto de partida de toda e qualquer ciência humana, sendo assim a base do olhar do psicólogo, do fenomenológo, do psicanalista e do cientista social. Talvez seja essa a grande lição da Antropologia para o campo das ciências humanas: um olhar que subverte a postura etnocêntrica tradicional, procurando fazer a ponte de sentido entre o diferente e o semelhante, por meio de um duplo movimento interrogação do outro a partir do próprio e do próprio a partir do outro. Portanto, Baraka é por si só um verdadeiro exercício do olhar antropológico que nos lança em busca da resposta sobre a essência do humano.

Falemos agora das significações específicas que o filme suscita. Podemos dizer que a proposta do filme é fazer um mosaico da variedade natural e humana, articulando-as para produzir efeitos de complementaridade e contraste. Penso que qualidade do filme está neste sutil e lento tecer que a narrativa não estruturada e muda nos proporciona. Logo de saída há uma cena fantástica que dá a tônica dessa interpenetração entre vida natural e vida cultural.


A câmera acompanha um grupo de macacos orientais tomando banho em uma fonte de água termal como forma de se protegerem do frio. Um close é dado em um macaco particular, que em seu olhar circunspecto e em total imobilidade, lembra um ancião humano. A experiência é clara: você sente fazer "contato" com o olhar humano do macaco em uma atividade sobre o corpo tão caracteristicamente cultural que é tomar banho. Você sente o "deleite" humano do ócio daquele animal.

O que o filme não explicita para o espectador é que essa experiência de "banho de água quente" é um dos poucos registros catalogados de criação de cultura entre os animais. Para muitos biólogos, o que faz uma conduta ser cultural é que ela é desenvolvida por meio de aprendizagem coletiva pelos indivíduos de um grupo e é perpetuada no grupo por meio do ensino. É uma adaptação não instintiva e mantida por meio de aprendizagem no grupo de geração em geração. Pois bem, nesse sentido, essa prática de banho foi uma conduta aprendida por certos grupos de macacos orientais, que normalmente evitavam se molhar e lugares perigosos como fontes de águas termais.

É claro que há uma ampla discussão sobre se isso é suficiente para definir a cultura humana, como, por exemplo, se não falta aí justamente o aparato simbólico que é característico da formações culturais humanas. Nesse sentido, as pessoas podem argumentar que ver um macaco fazer uso de linguagem simbólica seria mais significativo de uma possibilidade de "cultura" animal (o que também já foi amplamente documentado, por sinal). Mas não importa, pois não se trata de uma discussão científico-acadêmica, mas sim da provocação de uma experiência de sentido e não podemos negar que essa cena te impele a habitar o lugar mítico da cesura entre natureza e cultura.

Pois é justamente do limiar entre natureza e cultura que parte o filme, percorrendo em seguida as diferentes formas pelas quais os humanos se alienam e se submetem aos regimes simbólicos mais estranhos. Dos fetiches religiosos como cadeados, pedras e tábuas até as marcas de pintura de ambientes e corpos, tudo excreta sentido. Um segundo momento marcante é a primeira cena em que efetivamente entra em jogo a fala e a sonoridade do corpo humano na produção de um ritual coletivo. A cena é forte por dois motivos: a extrema coesão e uniformidade do grupo de homens que encena o ritual e o aparente absurdo e despropósito de uma linguagem que ainda está muito colada aos sons do corpo e da natureza. É a experiência de uma verdadeira convulsão humana que mimetiza ou representa o que parecem ser os movimentos da natureza. A totalidade coesa dos homens se divide em dois grupos que passam a alternar momentos de opressão e submissão sobre o outro grupo: um grupo se levanta e grita, o outro deita e se cala. Parece que o ritual tenta dar ordem ao caos do agrupamento humano por meio de uma inspiração nos ritmos da natureza. É como se a partir da natureza se produzissem as linhas de força que articulam a cultura humana. Mas também é um atestado de como o ser humano se submete a essa estrutura de sentido que precede ao indivíduo e o molda.

As ilustrações se seguem, ora mostrando modos de vida mais articulados à natureza, ora mostrando modos de vida em que a cultura ganha uma vida e estrutura próprias, quase independentes.  São as cenas que mostram a vida nas grandes cidades. Ali vemos emergir uma temporalidade nova, um ritmo massificado e uniformizado, cuja metáfora fundamental é o funcionamento de uma máquina. De linhas de produção de cigarros, passando pelo pedestres e pela seriação de pintos em uma granja, até o pulsar constante e ritmado do trânsito nas ruas, vai se construindo a imagem de uma grande e opressora máquina que são as grandes cidades das "civilizações modernas" humanas. São cenas fortes, transbordando a sensação paradoxal de que o auge da coesão social seja também o auge do anonimato, da indiferença e da falta de sentido na vida. Mais ainda, a indicação de que a sociedade acaba se constituindo em um novo organismo vivo, no qual não passamos de células acéfalas e desumanizadas.

Por meio desse percurso, se fecha o círculo que saiu da natureza para a cultura e que da cultura volta à natureza. O humano é aquilo que ficou no caminho, ou melhor, a condição humana é essa própria travessia. Por conta disso, entendo que o grande fio condutor dessa narrativa sejam as vicissitudes da temporalidade no que tem de condição essencial do ser humano. Sim, pois não se enganem: os ritmos da natureza são apenas o suporte para a temporalidade humana. A vivência de tempo no filme é uma construção humana: do cineasta e do espectador.

Não há algo de reconfortante e tranquilizador em ver a passagem do tempo na natureza, como a noite que cai e avança, ou o sinuoso movimento das nuvens? É quase um alívio constatar essa encarnação do tempo na natureza, pois é uma espécie de atestado de que ele não me pertence; que está ali claro e objetivo diante de mim. O tempo é produto do sentido; é produto desse véu com que a linguagem nos envolve, tal como as nuvens lentamente se apropriam e cobrem o olhar da paisagem em uma das cenas do filme. Isso certamente daria pano para um debate ontológico sobre a natureza humana, em que certamente a fenomenologia existencial teria uma grande contribuição a dar. Mas não cabe desenvolver isso aqui, afinal a força do filme está justamente em conseguir comunicar essa experiência de forma intuitiva.

Entendo, portanto, que Baraka seja mais do que um documentário sobre a diversidade humana ou sobre as belezas da natureza. Também acredito que não seja um filme de bandeira "ecológica" ou "religiosa", que pregue simplesmente a volta ao paraíso perdido do seio da mãe natureza onde reina a harmonia e a bondade. Ele é um filme sobre o encantamento e o estranhamento da trágica condição da travessia humana em que a busca de sentido se configura como nossa única luz. Nesse sentido, é uma obra de arte altamente indicada para qualquer um que deseje se ocupar disso como objeto de estudo e de identidade profissional.






Um comentário:

  1. Essa crítica, apesar de bastante erudita, foi importante para que eu tivesse alguns insights sobre o filme, bastante abstrato.

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