terça-feira, 12 de abril de 2011

Atualizações e links sobre Zizek

Complementando o post anterior, seguem alguns links interessantes sobre o Slavoj Zizek

Blog Zizek: apresenta boa parte da obra do autor e com vários links interessantes

http://slavoj-zizek.blogspot.com/

Incluindo o link do documentário Zizek (2005), disponível para download em:

 http://www.megaupload.com/?d=3UO6VHXV

Quanto ao famoso guia perverso do cinema, tem em partes no You Tube e também disponível para download em:

http://www.baixargratis.tv/filmes/the-pervert-s-guide-to-cinema.html

Só é chato porque está em duas partes.

Mas o mais interessante é que há fortes indícios de que Zizek virá ao Brasil para o seguinte evento, mas não encontrei maiores informações, como, por exemplo, onde e quanto será!

Maio 20 e 21 - Seminário: Revoluções - Uma política do sensível

http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

Quem souber de maiores informações, favor compartilhar!

Bem, por enquanto é isso. Fico devendo o texto sobre o Filme...

Encarnação da "Mãe Suficientemente Boa"

Os psicanalistas encontrarão aqui uma ótima tirada com a noção de apresentação de objeto de Winnicott. Divirtam-se!

Comercial Volkswagen Darth Vader

domingo, 10 de abril de 2011

Um Psicanalista sem Papas na Língua

Filósofo e psicanalista sloveno é o representante de uma espécie em extinção na contemporaneidade: o livre-pensador revolucionário e polêmico de esquerda.

Slavoj Zizek (1949) é um filósofo e psicanalista da Slovênia (antiga província da Iugoslávia comunista) que tem aparecido cada vez mais no meio acadêmico nacional, com uma série de livros publicados no Brasil nesta última década. Crítico da cultura e sociedade contemporânea, apoia-se em Lacan e Marx para pensar temas como a ideologia, o real e a subjetividade.

É um autor bastante produtivo, que escreve sobre os mais variados temas da cultura e sociedade contemporânea, tentando articular uma visão sobre a chamada subjetividade pós-moderna que mantenha uma dimensão de engajamento, radicalidade e emancipação, ideários esquerdistas que andavam completamente fora de moda em função de seu apelo carateristicamente modernista. Penso que é possível abordar o pensamento de Zizek por vários caminhos, quer seja a partir de seu engajamento político, quer seja pela construção de um discurso filosófico da subjetividade, quer seja pelo olhar psicanalítico para essa mesma subjetividade contemporânea.

Costuma-se dizer que o trabalho de Zizek é marcado por uma tentativa de articulação entre a Psicanálise e o Marxismo, por meio do referencial Lacaniano. De fato, Zizek fez formação em psicanálise na França e é um dos principais expoentes do grupo de Jacques Allain-Miller e defensores do último Lacan, o da clínica do Real. Contudo, embora Lacan seja uma referência central em seu pensamento, o Marxismo não me parece tão central, ou, pelo menos, tão puro. Penso que o que fica do marxismo em Zizek é sua dimensão política, pois ele se distancia claramente dos herdeiros contemporâneos do marxismo na filosofia européia, que são os autores da psicologia crítica da sociedade. Ora, uma das contribuições reconhecidamente mais importantes e centrais do pensamento de Zizek é sua releitura da ideologia. Como se sabe, a concepção marxista clássica de ideologia é a de uma ilusão imaginária produzida pelas classes dominantes para ocultar o movimento histórico de constituição material e dialética da sociedade. Nesse sentido, o marxismo é herdeiro de uma visão moderna de realidade como positividade, ou seja, parte da crença que sob o véu de ilusões ideológicas jaz a realidade das condições materiais históricas. Daí a noção de revolução como restituição da marcha original da história. Afinal não é esse o sentido maior da dialética do esclarecimento dos frankfurtianos: recolocar a história no trilho da emancipação humana? Pois bem, o marxismo de Zizek não é nada positivo e essencialista. Se quisermos, podemos dizer que Zizek reinscreve a problemática marxista no contexto da pós-modernidade, onde todas as ilusões essencialistas são definitivamente desintegradas.

 É aí que entra a contribuição de Lacan, por meio da concepção do Real. Como se sabe, o último Lacan é aquele da primazia do registro do Real sobre os registros do Simbólico e do Imaginário, onde o objeto a ganha sua conotação definitiva de "a Coisa (Das Ding)" ou objeto-fonte da pulsão. Assim, no lugar de um sujeito do inconsciente calcado na verdade do desejo, sobressai o momento de constituição das tramas simbólico-imaginárias como resposta ao encontro com o Real. É a dimensão traumática e negativa da pulsão de morte como momento zero da subjetivação que é ressaltada com a noção de um gozo para além de qualquer possibilidade de inscrição e, portanto, fonte contínua de todo movimento de subjetivação. É essa concepção do Real Lacaniano que é o fundamento para Zizek fazer uma leitura da subjetividade contemporânea que esteja assentada em uma negatividade originária. Nisso ele se alia ao grande movimento da filosofia contemporânea em direção a uma desconstrução da subjetividade moderna, que vai da ontologia hermenêutica Heidegger aos pós-estruturalistas e desconstrucionistas franceses. Mas sua contribuição específica está em afirmar que a ideologia é uma construção simbólico-imaginária que tenta dar conta do encontro com a dimensão traumática e impossível do Real e, que, portanto, se assenta em uma resposta diante do negativo e não uma ocultação de uma suposta realidade postivia exterior à subjetividade.

Bem, a pergunta diante dessa tese fundamental é: o que sobra de marxismo nessa concepção de sujeito? Parece-me que não sobra muito em termos ontológicos. O mesmo pode-se dizer da psicanálise: estamos completamente fora de uma psicanálise que se assente em uma ontologia do sujeito psicológico. Portanto, Zizek é claramente um lacaniano e nos ajuda a entender a radicalidade das implicações filosóficas da posição de Lacan. Mas assim, como o pensamento de Zizek não transita mais no nível de Marx, também não transita no nível de Freud.  É, de fato, uma concepção radical e contemporânea de subjetividade.

Não me interessa tanto entrar pelos meandros da contribuição filosófica de Zizek no panorama dos discursos sobre a pós-modernidade, o que me chamou a atenção foi seu aporte psicanalítico para pensar a questão da subjetividade e, principalmente, a aplicação desse olhar e dessa escuta sobre os fenômenos sociais e culturais. Pois aí é que entra em cena o Zizek propriamente livre-pensador. Além das implicações políticas que sua desconstrução dos discursos ideológicos promove, ele chama a atenção para a estrutura paradoxal e absurda das produções de sentido humanas, ou seja, aponta propriamente para a dimensão inconsciente das formações culturais. Nisso, mais especificamente, ele é um ótimo psicanalista dos fenômenos sociais e faz isso com um estilo retórico bastante característico e marcante. É também  nesse nível que ele é mais "pop"! Trata-se de mais uma ilustração daquele princípio clássico de que as instituições sofrem do mesmo sintoma que pretendem erradicar. Pois bem, Zizek em sua radicalidade crítica é também uma ilustração do que seria o livre-pensador contemporâneo: transita com maestria pela cultura pop e busca em vinhetas do cotidiano da cultura, em especial nas narrativas do cinema, explicitar o campo de problemáticas da subjetividade. Nisso, é claro, ele faz o que é uma característica marcante dos nossos tempor: torna "palatável" e "assimilável" com um estilo jocoso e frenético, os enigmáticos conceitos da filosofia e da psicanálise. Assim, ironicamente, ele acaba sendo revolucionário em relação ao discurso acadêmico, principalmente na psicanálise lacaniana, pois deixa de encarnar o tal do sujeito suposto saber que é o duplo de toda instituição lacaniana...

É verdade! Uma das coisas que sempre me impediu de me identificar com o discurso lacaniano é que ele também sofre sintomaticamente do mal que procura erradicar: os lacanianos encarnam o suposto saber como ninguém, abrindo mão de encarnar o ideal para o reles pequeno outro, mas literalmente pagando pau para o regime discursivo do grande Outro. Sim, porque para mim essa é a principal razão do execrado "lacanês": é o código secreto que compartilham aqueles que tem acesso à "Verdade". É claro que com isso estou criticando o estereótipo cultural do lacaniano, cujo representante típico é o pobre estudante em formação que precisa criar uma identidade diante do traumático da experiência do inconsciente na clínica e na teoria... Mas, infelizmente, é essa a marca que fica na cultura popularizada e de massas, o que permite a aproximação do movimento lacaniano com uma instituição religiosa. Enfim, sempre me irritou bastante essa reverência hermética dos lacanianos e Zizek é um pensador que não precisa pagar pau para os pais simbólicos da psicanálise e da filosofia. Isso é que faz dele um pensador maduro e original e penso que essa seja a maior contribuição que ele possa dar para a velha acadêmia sempre ocupada em reverenciar mais do mesmo.

É claro que a irreverência, humor e originalidade de Zizek também cativam. Penso que isso tenha possibilitado que ele tenha caído nas malhas da cultura pop. Pelo menos é alguém que usa do discurso da cultura de massas para proporcionar uma reflexividade, o que é, por si só, fantástico! Afinal a sociedade da informação possibilita que qualquer um se intitule um autor, certo? Assim, os ensaios de Zizek são muito bem-vindos para trazer vida nova à crítica da cultura e à reflexão sobre a subjetividade contemporânea. É também um exemplo de que se pode ser "popular" com qualidade, algo que no Brasil, em particular, sempre foi tabu (o que, por sinal, é um ótimo exemplo da condição paradoxal do nosso elitismo...).

O único revés que vejo em Zizek é que ele não tem "papas na língua" em outro sentido: escreve compulsivamente! Nisso ele me irrita tanto quanto um outro autor que está na crista da onda das discussões sobre a pós-modernidade e que também é um ótimo representante do que melhor pôde se produzir a partir do "outro lado" do mundo bipolar que marcou a geopolítica da segunda metade do século XX: Zygmunt Bauman. Claro que eles têm justificativas pessoais para reescrever o mesmo texto tantas vezes, mas talvez isso também seja uma inevitabilidade desses tempos contemporâneos de produção desenfreada. De qualquer forma, por mais que admire a contemporaneidade, nesse ponto sou mais modesto...

Mas vamos lá, por onde começar a conhecer Zizek? Acho que os documentários são um bom começo, em especial o ótimo "Guia do Perverso para o Cinema" (2006), do qual estou devendo um post neste blog (Quem sabe o próximo...). Dos livros, achei muito interessante a leitura de seu livro recente sobre Lacan. Foi o livro que conseguiu finalmente me capturar para o pensamento do autor. Acho que pode ser o mais interessante para os estudantes de psicologia e de psicanálise, porque introduz a partir de temáticas mais próximas do universo conceitual e teórico desse público, em vez da discussão mais ampla sobre sociedade, política e filosofia. Minha sugestão para os "psi" é começar pelo singelo e aparentemente didático Como Ler Lacan (Zahar, 2009) e, se quiserem ter uma visão mais ampla do pensamento do autor, partir para a coletânea de entrevistas Arriscar o Impossível: conversas com Zizek (Martins, 2006). Vou me ater a falar um pouco do primeiro livro.


Em tempo: o projeto editorial desses dois livros diz tudo, não? Mais evocador do ideário comunista impossível! Deve ter sido pura jogada de marketing das editoras, mostrando como na contemporaneidade até a revolução virou mercadoria. Só faltou a foto clássica do Che Guevara... Enfim, são os absurdos do real!

O título do primeiro livro é já uma provocação. Espera-se uma apresentação "didática" do pensamento lacaniano, mas o que se vê é uma coletânea de ensaios sobre a cultura que ilustram conceitos fundamentais do pensamento lacaniano, em especial as concepções de sujeito, fantasia e real. Mas embora seja bastante competente em ilustrar e desenvolver o sentido de excertos herméticos e clássicos da obra de Lacan por meio de recortes da cultura cotidiana, como o discurso do terrorismo, a literatura de Dostoiévski, e filmes como Alien, Casablanca e De Olhos Bem Fechados, não são propriamente textos para não-iniciados. O Que Zizek faz é "Ler a Cultura com Lacan", mostrando como o referencial lacaniano é útil para ler a realidade discursiva das ideologias que a cultura produz e reproduz. Também faz aí sua tomada de posição de que a psicanálise é um instrumento de leitura da sociedade, ou melhor, de que a psicanálise é um método de escuta da formações discursivas que compõem a realidade e a subjetividade. Como um bom pós-moderno, Zizek nos ensina, a partir de Lacan, que a personalização do sujeito e a distinção entre psiquismo individual e coletividade social são ilusões modernas.

Assim, "Como ler Lacan" não é um livro para iniciantes, embora possamos aprender com Lacan e com Zizek que também não há como se iniciar em uma ideologia a partir "de fora", mas que só se pode "ler" um autor percorrendo o mesmo caminho discursivo, ou seja, só se pode entender um pensamento a partir "de dentro", sendo habitado e deixando-se habitar por ele. Então, também se entende que não há como se "introduzir" alguém a um regime discursivo sem traumatismos, sem a violência da diferença. Nisso me parece que Zizek é radicalmente lacaniano. Este seu livro, inclusive, versa sobre conceitos-chave fundamentais da obra de Lacan que permitem uma inserção na problemática da subjetividade contemporânea. Partindo de uma elucidação da linguagem como ato performático e, portanto, da marca fundamental da virada lingüístico-pragmática da filosofia contemporânea, Zizek situa o pensamento lacaniano na ruptura com a tradição moderna de sujeito. Em seguida, mostra toda a complexidade da noção de sujeito na psicanálise lacaniana, passando para a relação entre ideologia e fantasia, reiterando a sua posição de que a fantasia é uma resposta à experiência da negatividade do Real. Por fim, apresenta formidavelmente a concepção de Real, que é o ponto de partida de uma nova ontologia baseada na psicanálise lacaniana. Tendo feito esse percurso de apresentação da concepção de sujeito em Lacan, arremata o livro com dois ensaios sobre as derivações dessa concepção para a vida social, com uma crítica da política e da religião.

O que me chama a atenção em termos de apresentação dos conceitos lacanianos neste livro é justamente a clareza da ilustração da radicalidade do conceito de sujeito. Como bons modernos, tendemos a ler Lacan a partir de um ideário moderno e humanista, que resgata a autonomia e a liberdade perdidas da consciência em um suposto sujeito do inconsciente que carregaria a essência da verdade do desejo. Mas a radicalidade e originalidade de Lacan está justamente na ruptura com essa tese essencialista e em uma afirmação da diferença e da negatividade como atributos da subjetividade. Nesse sentido, é extremamente necessário resgatar como a subjetividade na psicanálise é, sobretudo, passiva e alienada no Outro. O ensaio do segundo capítulo é magistral para apresentar essa dimensão passiva e, de quebra, nos mostra o quanto essa dimensão é fundamental para entender a subjetividade contemporânea, na qual o gozo passivo é cada vez mais pregnante. A idéia de uma catarse interpassiva do sujeito contemporâneo me parece extremamente rica e original para a discussão sobre a constituição da subjetividade na relação com a alteridade. Para Zizek, essa alteridade absoluta é, nada menos, do que o Real, o que acentua toda a origem traumática da constituição intersubjetiva do sujeito. Isso tem implicações filosóficas intensas, e se articula com posições éticas diversas, desde a posição existencial de Lévinas até as ontologias da diferença de Derrida e Deleuze.

O interessado em Lacan, por sua vez, encontrará um esclarecimento de conceitos fundamentais e também polissêmicos e confusos no jargão psicanalítico, como as concepções de Real e de gozo. Zizek não só mostra a complexidade desses conceitos, como quando, por exemplo, ilustra que o sadismo superegóico é mais um imperativo de gozo do que uma proibição ao desejo, como também desenvolve e desdobra essa problemática, como quando apresenta a idéia de um rebatimento dos registros da subjetividade uns sobre os outros, criando nuances do Real - o real real, o real simbólico e o real imaginário.

Portanto, como se pode perceber, não se trata de uma mera apresentação introdutória, mas da própria elaboração teórica em curso, o que faz com que a leitura desse livrinho de 150 páginas não seja uma tarefa fácil. Mas o problema é que o Diabo da coisa te seduz e te captura e quando você se dá conta, já embarcou no encadeamento. Isso quer dizer que é daqueles livros que se lê muitas vezes, sempre com uma nova perspectiva e que, portanto, também nunca se acaba. Talvez seja por isso que o próprio Zizek escreva tanto: para dar contorno ao que é impossível...

Vale à pena arriscar!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Baraka: O Sopro da Vida e o Encanto dos Sentidos


Documentário filmado em 24 países dá uma aula sobre o poder dos símbolos na vida humana.


Baraka é uma palavra sufi que significa algo como o sopro ou a pulsação da vida. É um nome bastante adequado para o documentário "experimental" americano de Ron Fricke (1992),  cinematografista que trabalhara em um projeto similar de filme sem narrativa que articulasse diversas imagens da natureza e das diversas culturas humanas, conhecido como trilogia Qatsi. Mais do que um mero filme étnico ou representante de certo "world cinema", Baraka é uma obra de arte sensível que nos captura e nos convida para um distanciamento estético em relação à essência do ser humano.


A característica distintiva deste filme como obra de arte é que se trata de uma colagem  sem qualquer narrativa estruturada. Não há enredo, não há um narrador que medeie a absorção e interpretação das imagens que são apresentadas. Há apenas uma música instrumental incidental de fundo e os sons da vida natural e cultural. No entanto, é justamente esse silenciamento da linguagem falada que provoca o estranhamento característico da experiência estética do filme. Ao calar, o filme liberta uma profusão de sentidos, deixando o espectador à mercê de seus próprios devaneios e interpretações. Tal como o eclipse que aparece com destaque no cartaz do filme, o silêncio põe em suspenso a clareza da linguagem e nos permite tomar distância em relação aquilo que, de tão claro, torna-se invisível: o fato de sermos seres cuja linguagem é o meio universal da experiência.

Curiosamente, a experiência fundamental que Baraka proporciona não é a do "puro" olhar. Por mais impressionante que sejam as imagens do filme, não se trata do lugar comum presente no ditado que afirma que "uma imagem vale mais do que mil palavras". O fato de não termos fala pode nos iludir que estamos apenas observando a realidade, mas o fato é que o silêncio das palavras apenas permite que uma outra linguagem se articule: a semiótica das imagens.

Na história das artes, é conhecido momento inicial de preconceito dos artistas e críticos em relação à fotografia. Um dos maiores detratrores da fotografia como forma de expressão artística foi o poeta e escritor francês Charles Baudelaire. Para ele, assim como para a maioria dos outros, a fotografia constituiria uma mera reprodução da realidade empírica e não uma expressão ou construção de sentido sobre a mesma. Ela seria meramente a fixação de imagens, permitindo uma duplicação e cópia da realidade. Não haveria ali lugar para a invocação de sentido própria da expressão artística e da experiência estética. Ora, o que esses críticos  esqueceram e que posteriormente foi ficando cada vez mais claro é que a técnica fotográfica permitia um distanciamento da imagem por meio de sua reprodução da realidade. Mais ainda, ela permitia um recorte e um testemunho concreto e estático de uma realidade que se apresentava como puro devir temporal. Pois bem, ao recortar a totalidade da realidade e representá-la por uma imagem, a fotografia permite um distanciamento interpretativo que cria sentidos. A foto não é a realidade, mas um parte da realidade representada e que, portanto, é dotada de intencionalidade e de significação. O enquadramento, a luz, e diversas outras características da fotografia nos invocam sentidos que estão para além da afetação natural que esses fenômenos visuais nos provocam. O fato de estar ali, reproduzido, concretizado, encarnado de intencionalidade humana nos faz interrogar sobre o sentido que se esconde por trás da mera imagem.

Esse fenômeno, que já é pregnante na experiência fotográfica, se amplia de forma considerável na experiência cinematográfica. Pode parecer que a experiência visual de um filme seja mais real, porque se desdobra no tempo, porque traz imagens encadeadas "naturalmente" ou porque nos dá a sensação de "imersão". Mas isto também é ilusório. O essencial da arte do cinema está na articulação das diversas imagens na criação de um enredo e de uma narrativa que se sustente em sua própria linguagem.  Como todos sabem, trata-se de uma história contada por meio de imagens. A fotografia, a edição, os diálogos e a trilha sonora compõe uma trama complexa de vários níveis de sentido que, contudo, parecem "reais". No entanto, há um distanciamento entre a poltrona e a imagem na tela,  uma verdadeira certeza ontológica  do caráter imaginário da vivência, que justamente permite e sustenta a ilusão da experiência estética cinematográfica.

Podemos então dizer que a linguagem está encarnada no olhar e que se uma imagem vale mais do que mil palavras é só porque uma imagem pode suscitar mais invocações de sentido do que uma única palavra e também porque a imagem tem um poder a mais de sedução porque concretiza e materializa o sentido dos atos de linguagem.

Por causa de suas características estruturais e de sua temática geral, Baraka  nos convida a pôr em suspenso os sentidos que atravessam e constituem nosso cotidiano, assumindo uma postura de reconhecimento e de contato com a alteridade dos fenômenos humanos que nos rodeiam. Essa atitude ética fundamental é o ponto de partida de toda e qualquer ciência humana, sendo assim a base do olhar do psicólogo, do fenomenológo, do psicanalista e do cientista social. Talvez seja essa a grande lição da Antropologia para o campo das ciências humanas: um olhar que subverte a postura etnocêntrica tradicional, procurando fazer a ponte de sentido entre o diferente e o semelhante, por meio de um duplo movimento interrogação do outro a partir do próprio e do próprio a partir do outro. Portanto, Baraka é por si só um verdadeiro exercício do olhar antropológico que nos lança em busca da resposta sobre a essência do humano.

Falemos agora das significações específicas que o filme suscita. Podemos dizer que a proposta do filme é fazer um mosaico da variedade natural e humana, articulando-as para produzir efeitos de complementaridade e contraste. Penso que qualidade do filme está neste sutil e lento tecer que a narrativa não estruturada e muda nos proporciona. Logo de saída há uma cena fantástica que dá a tônica dessa interpenetração entre vida natural e vida cultural.


A câmera acompanha um grupo de macacos orientais tomando banho em uma fonte de água termal como forma de se protegerem do frio. Um close é dado em um macaco particular, que em seu olhar circunspecto e em total imobilidade, lembra um ancião humano. A experiência é clara: você sente fazer "contato" com o olhar humano do macaco em uma atividade sobre o corpo tão caracteristicamente cultural que é tomar banho. Você sente o "deleite" humano do ócio daquele animal.

O que o filme não explicita para o espectador é que essa experiência de "banho de água quente" é um dos poucos registros catalogados de criação de cultura entre os animais. Para muitos biólogos, o que faz uma conduta ser cultural é que ela é desenvolvida por meio de aprendizagem coletiva pelos indivíduos de um grupo e é perpetuada no grupo por meio do ensino. É uma adaptação não instintiva e mantida por meio de aprendizagem no grupo de geração em geração. Pois bem, nesse sentido, essa prática de banho foi uma conduta aprendida por certos grupos de macacos orientais, que normalmente evitavam se molhar e lugares perigosos como fontes de águas termais.

É claro que há uma ampla discussão sobre se isso é suficiente para definir a cultura humana, como, por exemplo, se não falta aí justamente o aparato simbólico que é característico da formações culturais humanas. Nesse sentido, as pessoas podem argumentar que ver um macaco fazer uso de linguagem simbólica seria mais significativo de uma possibilidade de "cultura" animal (o que também já foi amplamente documentado, por sinal). Mas não importa, pois não se trata de uma discussão científico-acadêmica, mas sim da provocação de uma experiência de sentido e não podemos negar que essa cena te impele a habitar o lugar mítico da cesura entre natureza e cultura.

Pois é justamente do limiar entre natureza e cultura que parte o filme, percorrendo em seguida as diferentes formas pelas quais os humanos se alienam e se submetem aos regimes simbólicos mais estranhos. Dos fetiches religiosos como cadeados, pedras e tábuas até as marcas de pintura de ambientes e corpos, tudo excreta sentido. Um segundo momento marcante é a primeira cena em que efetivamente entra em jogo a fala e a sonoridade do corpo humano na produção de um ritual coletivo. A cena é forte por dois motivos: a extrema coesão e uniformidade do grupo de homens que encena o ritual e o aparente absurdo e despropósito de uma linguagem que ainda está muito colada aos sons do corpo e da natureza. É a experiência de uma verdadeira convulsão humana que mimetiza ou representa o que parecem ser os movimentos da natureza. A totalidade coesa dos homens se divide em dois grupos que passam a alternar momentos de opressão e submissão sobre o outro grupo: um grupo se levanta e grita, o outro deita e se cala. Parece que o ritual tenta dar ordem ao caos do agrupamento humano por meio de uma inspiração nos ritmos da natureza. É como se a partir da natureza se produzissem as linhas de força que articulam a cultura humana. Mas também é um atestado de como o ser humano se submete a essa estrutura de sentido que precede ao indivíduo e o molda.

As ilustrações se seguem, ora mostrando modos de vida mais articulados à natureza, ora mostrando modos de vida em que a cultura ganha uma vida e estrutura próprias, quase independentes.  São as cenas que mostram a vida nas grandes cidades. Ali vemos emergir uma temporalidade nova, um ritmo massificado e uniformizado, cuja metáfora fundamental é o funcionamento de uma máquina. De linhas de produção de cigarros, passando pelo pedestres e pela seriação de pintos em uma granja, até o pulsar constante e ritmado do trânsito nas ruas, vai se construindo a imagem de uma grande e opressora máquina que são as grandes cidades das "civilizações modernas" humanas. São cenas fortes, transbordando a sensação paradoxal de que o auge da coesão social seja também o auge do anonimato, da indiferença e da falta de sentido na vida. Mais ainda, a indicação de que a sociedade acaba se constituindo em um novo organismo vivo, no qual não passamos de células acéfalas e desumanizadas.

Por meio desse percurso, se fecha o círculo que saiu da natureza para a cultura e que da cultura volta à natureza. O humano é aquilo que ficou no caminho, ou melhor, a condição humana é essa própria travessia. Por conta disso, entendo que o grande fio condutor dessa narrativa sejam as vicissitudes da temporalidade no que tem de condição essencial do ser humano. Sim, pois não se enganem: os ritmos da natureza são apenas o suporte para a temporalidade humana. A vivência de tempo no filme é uma construção humana: do cineasta e do espectador.

Não há algo de reconfortante e tranquilizador em ver a passagem do tempo na natureza, como a noite que cai e avança, ou o sinuoso movimento das nuvens? É quase um alívio constatar essa encarnação do tempo na natureza, pois é uma espécie de atestado de que ele não me pertence; que está ali claro e objetivo diante de mim. O tempo é produto do sentido; é produto desse véu com que a linguagem nos envolve, tal como as nuvens lentamente se apropriam e cobrem o olhar da paisagem em uma das cenas do filme. Isso certamente daria pano para um debate ontológico sobre a natureza humana, em que certamente a fenomenologia existencial teria uma grande contribuição a dar. Mas não cabe desenvolver isso aqui, afinal a força do filme está justamente em conseguir comunicar essa experiência de forma intuitiva.

Entendo, portanto, que Baraka seja mais do que um documentário sobre a diversidade humana ou sobre as belezas da natureza. Também acredito que não seja um filme de bandeira "ecológica" ou "religiosa", que pregue simplesmente a volta ao paraíso perdido do seio da mãe natureza onde reina a harmonia e a bondade. Ele é um filme sobre o encantamento e o estranhamento da trágica condição da travessia humana em que a busca de sentido se configura como nossa única luz. Nesse sentido, é uma obra de arte altamente indicada para qualquer um que deseje se ocupar disso como objeto de estudo e de identidade profissional.