quarta-feira, 3 de julho de 2013

Morte e Luto na Contemporaneidade: notas para uma Palestra

Considerações Psicanalíticas sobre a Morte e o Luto: 
Palestra de Abertura da XXVI Jornada de Psicologia da UNOESTE*

Embora seja um horizonte fundamental da vida e do ciclo vital humano, a morte é um fenômeno de estudos relativamente recente de estudos psicológicos e interdisciplinares na área de saúde.  Tendo estado por muito tempo velada e mesmo excluída do âmbito social e cultural, a questão da morte ressurge com ampla evidência no cotidiano, evidenciando a fragilidade de nosso desamparo contemporâneo.

Érico Bruno Viana Campos**

A cultura e a sociedade contemporâneas são marcadas pela ambiguidade: multiplicidade de parâmetros, falência de instituições, relativização de normas, infinitude de espaços, rapidez do tempo, fragilidade dos vínculos, exarcebação dos conflitos e, sobretudo, explosões de violência. Na mesma época em que os avanços da biotecnologia e da medicina nos levam a crer na possibilidade da imortalidade, também se encontra o mais cruel descaso com a vida humana. Em meio a tudo isso, o fascínio com os limites entre vida e morte emerge com renovado interesse.
Não é à toa que é nesse mundo pós-moderno que a questão da morte saiu do âmbito da tradição e dos costumes para cair propriamente no âmbito do saber científico e dos cuidados à saúde. Para tanto, precisou romper tabus dentro da própria tradição médica higienista e sanitarista que marcou a nossa modernidade.
            A proposta desta comunicação é apresentar o campo da tanatologia e da psicologia da morte, discutindo suas implicações no contexto da subjetividade contemporânea.

Por que falar de morte ainda é difícil?
A questão da morte é um assunto sagrado nas mais variadas culturas humanas. Como tudo que é sacro, inspira fascínio e medo, promove rituais e tradições, instaura tabus. Chama a atenção que a subjetividade moderna, marcada pelo racionalismo e o universalismo, não tenha conseguido se apropriar da questão da morte. Pelo contrário, nossa modernidade excluiu a morte como signo do fracasso da vontade e poderes humanos.
Foi só a partir da crise da modernidade que a filosofia se permitiu tomar a angústia diante da morte e a necessidade de transcendência da vida como uma questão realmente fundamental de nossa condição humana. Foram os existencialistas, imbuídos da melancolia que acompanhou as grandes guerras do século XX, que resgataram o lugar da morte como horizonte constitutivo da existência humana. De Heidegger e Sartre, passando por Camus, que afirmou o suicídio como questão filosófica fundamental, esses autores puderam mostrar que a questão do sentido da vida era o que havia de essencial na condição humana e que esse sentido era fruto do limite dado pela morte. Em outras palavras, a vida só vale à pena ser vivida e só encontra sentido porque está o tempo todo relativizada e posta em perspectiva pelo vazio e pelo limite da mortalidade. A imortalidade torna a vida insignificante e inumana, como tão bem ilustra a estória do conde Fosca, no romance Todos os Homens são Mortais, de Simone de Beuvoir.
No entanto, mesmo com essas preciosas indicações de filósofos e humanistas, demorou ainda certo tempo para que os profissionais de saúde se interessassem verdadeiramente pelas questões da morte. A medicina moderna, modelo e matriz de todas as profissões e saberes na área de saúde, por muito tempo ignorou a importância da morte ou, mais precisamente, encarou-a como uma inimiga que deveria ser vencida e superada a qualquer custo. Isso levou a uma verdadeira exclusão da morte do âmbito social, fazendo com que a morte ficasse relegada ao silêncio desconfortável e confinada ao âmbito asséptico e impessoal dos hospitais. Durante boa parte da escalada de conquistas da medicina científica, de metade do século XIX até a metade do século XX, a morte foi vista como algo a ser excluído e vencido, ou, em caso de derrota, como algo a que cabia resignação, de forma íntima, digna e silenciosa. Somente a partir dos anos 60 do século XX é que essa posição começou a mudar, por meio de pioneiros na humanização da saúde que trouxeram justamente a necessidade de repensar o lema da saúde a qualquer custo e a dar espaço para o acolhimento das angústias envolvidas nos processos de elaboração dos lutos. Esse movimento levou à criação e consolidação do campo da Psicologia da Morte e da Tanatologia.

Psicologia da Morte e Tanatologia
A Psicologia da Morte é uma área de aplicação e de estudos em psicologia voltada para as questões envolvidas na morte como etapa do ciclo vital do desenvolvimento humano e para os processos psíquicos de elaboração dos lutos em nível individual e social. Portanto, consiste em um recorte temático que atravessa as áreas mais tradicionais das Psicologias do Desenvolvimento, Clínica, Hospitalar e Social em uma vocação interdisciplinar com outros campos e profissões da Saúde compondo, então, uma sub-área da Tanatologia.
A Tanatologia, por sua vez, iniciou-se como um ramo da medicina (tanatologia forense) com o propósito de estudar a morte e suas consequências em uma abordagem clínica e anátomo-fisiológica. Com o tempo, foi se tornando um campo mais interdisciplinar, com aportes da enfermagem, das ciências sociais, da psicologia, etc., incluindo outros aspectos além dos métodos e concepções da medicina tradicional.
A área teve como um dos seus pioneiros o médico canadense William Osler, que publico o livro A Study of Death, ainda em 1904. Mas os estudos intensificaram-se mesmo após a II Guerra Mundial. Os principais pioneiros nesse campo foram os médicos Feifel, com The Meaning of Death (1959), e Kübler-Ross, com Sobre a Morte e o Morrer (1969). A partir dos anos 1970, a crescente interdisciplinarização e ampliação do campo da saúde trouxe novos aportes, principalmente do campo da enfermagem, uma vez que as questões dos cuidados dos pacientes terminais e da atenção aos familiares acabavam sempre  recaindo sobre os profissionais dessa área.
No Brasil, os textos começaram a ser publicados e as práticas a ganhar evidência a partir dos anos 1980, derivados do trabalho da crescente área da psicologia hospitalar e da saúde. Nesse contexto, Wilma Torres criou o programa pioneiro de Estudos e Pesquisas em Tanatologia, na Fundação Getúlio Vargas. Um pouco depois, foram criados dois laboratórios que até hoje são centros de referência: o Laboratório dos Estudos sobre o Luto, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LeLu – PUC/SP), por Maria Helena Pereira Franco, e o Laboratório de Estudos sobre a Morte, da Universidade de São Paulo (LEM – IPUSP), por Maria Júlia Kovács.

Os Estágios de Reação à Morte
Elizabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíça radicada nos EUA, realizou importantes estudo com doentes terminais, sendo pioneira na abertura de espaços de discussão sobre a morte no contexto dos hospitais, por meio de seminários que funcionavam no modelo de grupos de encontro focados na discussão da experiência de luto e morte. Nesse trabalho, acabou por sistematizar uma escala de estágios de reação à morte que se tornou bastante popular na psicologia médica e, depois, no senso comum. Trata-se dos estágios pelos quais os pacientes passam desde o momento em que tomam conhecimento do prognóstico de alta possibilidade de mortalidade. Esses estágios não se apresentam necessariamente em ordem cronológica ou se apresentam de forma exclusiva na experiência do paciente, mas costumam se desenrolar ao longo dessa ordem no processo de aceitação da morte. São eles: negação, revolta, barganha, depressão e aceitação.
            A negação é o primeiro estágio, que diz respeito à reação de negar a realidade do fato da morte, considerando-a uma impossibilidade, uma falsidade, um exagero, um erro de diagnóstico, uma falta de fé; enfim, qualquer coisa que ateste que a morte não é um fato imperativo e inevitável. Assim, vai desde a negação mais imediata, presente em frases como “Não. Não pode ser!” ou “Vocês estão brincando comigo!”, até posições mais resistentes e duradouras em que a pessoa desenvolve pensamentos compulsivos e mesmo delirantes na busca de uma cura. Trata-se de uma reação irracional contra o susto e a perplexidade diante da morte.
            A revolta aparece quando finalmente o sujeito reconhece que a iminência da morte é um fato e que, como se costuma dizer de forma mais popular, “cai a ficha” de que se vai provavelmente morrer e precisa se lidar com isso. Esse reconhecimento leva a uma grande revolta que se expressa na famosa frase “Por que eu?”, que nada mais expressa do que a necessidade humana de encontrar sentido naquilo que não há. É nesse estágio que o sujeito começa a se indagar sobre o que fez de bom ou de mau em sua vida que pode ter sido o motivo para a punição máxima da morte. Inicialmente essa revolta é pura dor e desespero. Depois, ela vai se organizando na forma de um raciocínio mais ou menos racional em busca de causas, motivos e responsáveis. Esse recenseamento moral da vida leva a algumas conclusões que serão então mobilizadas em um processo de barganha com a morte, consigo e/ou com Deus. Esse já é o próximo estágio, em que a pessoa então faz uma negociação mais ou menos consciente para ganhar mais tempo. É quando se fazem as promessas e pedidos, expressos nas frases do tipo “Gostaria de viver até a formatura dos meus filhos” ou “Não me deixe morrer antes do meu aniversário!”. O estágio de barganha pode ser bastante longo e complexo, pois, a cada nova articulação de sentido e tentativa de resolução, o sujeito pode voltar a pontos de maior revolta ou de negação, descontruindo acordos e propondo novos. Mas, invariavelmente, a realidade imperativa da morte se impõe e essas negociações ilusórias acabam por se esgotar. É aí, então, que o sujeito cai na tristeza e na depressão.
            Somente nesse quarto estágio é que se considera que o processo de luto se instaura efetivamente. No estágio de depressão há um recolhimento introspectivo no qual o sujeito elabora solitariamente e silenciosamente a perda de si mesmo. O processo de luto muitas vezes se completa e leva o sujeito ao quinto e último estágio, a aceitação, mas pode ocorrer uma suspensão e congelamento do processo de luto, o que é chamado de luto congelado. No luto congelado, o processo de luto é adiado e diferido, não encontrando resolução e não deixando também o sujeito se desligar do objeto de amor perdido. Nesses casos é que normalmente o sujeito entra em um estado depressivo patológico que pode se cronificar e persistir por muito tempo. É nesse estágio, portanto, que o processo costuma paralisar, levando à necessidade de um acompanhamento mais cuidadoso por parte dos familiares e amigos que pode incluir o apoio de profissionais de saúde e até de acompanhamento psicoterapêutico. De qualquer forma, quando o processo de luto é finalizado, chega a aceitação da condição de morte iminente, na qual o sujeito se resigna e começa a se desligar dos objetos em vida. Nesse estágio há um certo alívio por meio de um sentimento de liberdade e de transcendência, o qual possibilita ao sujeito concluir seus vínculos e sua história pessoal. Esse é o momento propriamente de despedida, que quando não é alcançado ou efetivado, deixa um grande ressentimento e sentimento de culpa nas pessoas.
            Os estágios foram inicialmente definidos para descrever o processo dos pacientes em relação à própria morte, mas acabam por compreender a dinâmica do processo de luto como um todo, o que envolve também familiares e cuidadores e também situações de perda que não remetem diretamente à morte, tal como o término de uma relação, a mudança de emprego ou de cidade e assim por diante.

História Social da Morte
Outro autor que é referência fundamental na instauração do campo da Tanatologia é o historiador social francês Philippe Ariés, que descreveu, em sua História da Morte no Ocidente (1977), algumas representações sociais da morte na passagem da idade média para a modernidade. Esse trabalho, por sua vez, é um contraponto necessário de sua análise da constituição social da infância e da família na cultura ocidental moderna. A tese do autor é que a constituição da infância como categoria social própria da modernidade é simultâneo à desvalorização da tradição e do enraizamento coletivo próprio da sociedade feudal. A infância passou a ser valorizada na medida em que a família patriarcal foi se tornando nuclear e apartada das grandes balizas da tradição. O amparo que os sujeitos encontravam no passado e na tradição passou a ser compensado por um investimento nas gerações futuras. No que propriamente nos interessa, cabe indicar que isso se deu concomitantemente à desvalorização de um lugar social para a morte que era resguardado nas culturas tradicionais como a cultura feudal da idade média ocidental. Essa análise levou o autor a propor certas representações sociais da morte em nossa cultura ocidental. Representações sociais são conjuntos de ideias, crenças e conceitos próprios de um grupo social que servem para orientar suas interações e explicar os fenômenos cotidianos. São uma espécie de teoria prática do senso comum, mas diferentemente das representações mentais clássicas, que são individuais, essas são fruto da interação social e se consolidam na forma de concepções propriamente histórico-culturais.
Ariés faz um extenso apanhado da cultura do período feudal, resgatando a história dos costumes e do cotidiano no tocante aos rituais ligados à morte. Na sua descrição, ressalta que a morte era uma figura onipresente no contexto da cultura medieval. Além da onipresença da moral religiosa, com sua ideia de julgamento final e de salvação pela fé, e das imposições reais da realidade que deixavam a vida humana muito precária naqueles tempos (epidemias, fome, guerras, desastres naturais), o mundo feudal possuía uma série de tradições, embasadas na estrutura da família patriarcal, que davam amparo e sentido social à experiência da morte. A morte era um verdadeiro “acontecimento social”. Os moribundos ficavam em casa, sob os cuidados da família, recebendo visitas de parentes e agregados por vários dias, em que tinham a possibilidade de elaborar e ressignificar os vínculos. Os rituais religiosos e comunitários (missa, cortejo, homenagens, etc.) tinham um peso significativo. Enfim, a experiência era pública, coletiva e simbólica. Isso fazia da morte um acontecimento trágico, doloroso, mas parte necessária da vida cotidiana humana, o que configura uma representação da morte domada ou contida por amarras e ritos sociais.
Com o fim da idade média e início da modernidade, as amarras tradicionais e coletivas que amparavam a morte começaram a progressivamente se perder. Começou a prevalecer uma visão individualista e racionalista de sujeito, levando a uma restrição cada vez maior do campo dos afetos para a intimidade das famílias. Isso fez com que a questão da morte passasse de um âmbito mais público para a dimensão mais restrita da privacidade familiar. A expressão afetiva foi bastante excluída da dimensão pública na primeira modernidade, que foi extremamente marcada pelo racionalismo e universalismo. Mas isso não levou, imediatamente, a um esvaziamento ou desconsideração dos processos de luto e da importância simbólica da morte para a vida humana. Pode-se dizer que durante o Renascimento e o Iluminismo, ou seja, até o final da idade moderna clássica (final do século XVIII), a morte continuou sendo considerada parte constitutiva e essencial da condição humana, mas houve um deslocamento progressivo dela do âmbito público e coletivo para o privado e familiar. Esse progressivo movimento de tornar a vivência da morte singular e afetiva levou, na primeira metade do século XIX, por meio do movimento romântico, a um período de exacerbação e valorização da morte. Esse é o período em que a melancolia, o sofrimento pelo amor impossível e a idealização da morte foram extremamente valorizados, em especial na literatura.
Porém, com a constituição da medicina científica e seu progressivo avanço ao longo do século XIX, a questão da morte foi sendo escamoteada do domínio público e ficando cada vez mais restrita ao dispositivo por excelência da medicina, o hospital geral. Isso fez com que da segunda metade do século XIX até a primeira do XX passasse a imperar uma nova figura da morte: a morte interdita. Essa é a representação social que impera durante o auge do domínio do saber e da prática médica sobre o campo da saúde. Nela, a morte tem um caráter totalmente negativo. Como apontamos anteriormente, a morte aparece como uma derrota e uma vergonha, que precisa ser excluída da visibilidade social e restrita ao âmbito das instituições hospitalares. Mesmo ali, no hospital, a morte se torna um tabu. Não cabe ao médico falar dela, no máximo comunicar com eufemismos; não cabe ao paciente saber sobre ela; ninguém pode falar sobre o assunto, pois traz angústia e mal-estar. Essa postura é a que ainda domina o nosso senso comum, em que se acha que o paciente em risco de vida não tem direito de saber sobre sua condição, pois isso apenas irá deixa-lo mais deprimido, desesperado e fragilizado. Trata-se do famoso pacto do silêncio em torno da morte, que deixa todos reféns do mal-estar do não-dito e a um passo do luto congelado. É a principal causa do ressentimento posterior de não poder ter se despedido, pois não se podia falar a partir da condição reconhecimento da inevitabilidade do fim.
Foi essa visão da morte como derrota, vergonha, mal-estar, que deveria ser combatida a qualquer custo, própria da representação da morte interdita, que levou ao movimento de rehumanização das questões em torno do luto e dos cuidados à saúde de pacientes terminais e em risco de vida que culminou na área de Tanatologia e de Psicologia da Morte, cuja elaboração levou a uma consideração mais ampla da morte como parte do ciclo vital do desenvolvimento humano.

Morte, Desenvolvimento e Sofrimento Humano
            A Psicologia da Morte foi responsável pela introdução das discussões sobre a morte como horizonte do ciclo vital humano. Isso se deu de diferentes maneiras e em diferentes perspectivas teóricas e problemáticas práticas. No geral, podemos dizer que atualmente se considera que a integração do medo da morte à estrutura de personalidade é uma parte necessária no desenvolvimento humano. Do mesmo modo, entende-se que conflitos na elaboração desse processo contribuem para a produção se sintomas e sofrimento psíquico. Nesse sentido, mais do que sintomas pontuais ligados a situações ou objetos específicos, entende-se que a elaboração da perda de objetos primordiais de identificação é parte importante da estruturação da própria personalidade do sujeito. O enfrentamento da morte é uma experiência que recebe diferentes significações, interpretações e destinos a depender do momento do desenvolvimento psíquico, por isso deve-se considerar as peculiaridades específicas de cada período do desenvolvimento e as circunstâncias da morte para que se tenha uma compreensão mais abrangente de suas repercussões na família e no meio social em que a pessoa está (ou estava) inserida. Embora os níveis de simbolização e pensamento possam ser diferentes a depender do momento do desenvolvimento, há algumas características comuns a todo processo de enfrentamento de questões de vida e morte. Em geral, entende-se que o processo de morrer leva a pessoa a regredir a ideais e relações predominantemente infantis e a um modelo de resposta emocional infantil, o que serviria como defesa contra a percepção da ameaça de extinção. Nesse sentido, a necessidade de superar a morte consistiria o principal motivo para o desenvolvimento da cultura humana, ou seja, o impulso criativo humano que origina a cultura é motivado por uma necessidade de não ser esquecido. Em outras palavras, é o clássico adágio de que as pessoas morrem, mas os símbolos permanecem, de forma que é preciso deixar um legado reconhecido pelos outros (“uma árvore, um livro, um filho...”).
Embora tenha se desenvolvido por muito tempo à parte das discussões da Tanatologia e da Psicologia da Saúde, a Psicanálise toma as questões sobre a morte como um aspecto central de sua concepção de homem e traz uma série de contribuições importantes para a compreensão dos processos psicodinâmicos envolvidos na elaboração da morte de si mesmo e dos outros. Nessa perspectiva, a morte também é entendida como horizonte da vida, condição de nosso desejo e fonte última de nossas angústias, mas, muitas vezes, essas contribuições não são devidamente compreendidas. Isso se dá porque a questão da elaboração da perda é tão central para a compreensão psicanalítica de homem que os psicanalistas não se preocuparam em desenvolver uma teoria mais específica sobre as perdas reais e efetivas que as pessoas precisam enfrentar em situações emergenciais. A psicanálise desenvolveu-se tradicionalmente como uma psicoterapia “profunda”, isto é, como uma técnica que visava abordar as fantasias e construções imaginárias que organizam a personalidade geral do indivíduo. Nesse sentido, costumava-se dar pouca importância para questões mais imediatas da vida, entendendo que um sujeito adulto teria condições mínimas de lidar com suas próprias limitações e castrações. Foi só com a ampliação da escuta analítica para outros enquadres e demandas institucionais, como a psicologia hospitalar e da saúde, que a questão do luto diante da morte efetiva e seu manejo passou a ser enfocado. Talvez por essas razões ainda se encontre poucos trabalhos de cunho psicanalítico na área de psicologia da morte.
O medo da morte classicamente foi tratado em psicanálise como análogo à angústia de castração, portanto fruto de deslocamento do desejo sexual. Do mesmo modo, costumava-se dizer que no inconsciente não haveria representação da morte, o que justificaria o desinteresse pelo tema. Contudo, no final de sua obra, Freud passou a reconhecer a importância da morte na constituição da personalidade, por meio da hipótese da pulsão de morte como o mais fundamental da pulsão.
Assim, podemos entender a morte como uma realidade presente desde o nascimento, que desperta numerosas fantasias inconscientes e as correspondentes defesas contra elas. A partir disso, podemos entender que a abordagem psicanalítica tem pelo menos três contribuições importantes para a essa área. O primeiro é referir as representações sobre a morte e a perda ao registro do desejo inconsciente, revelando a riqueza da vida de fantasia em torno das significações e sentidos da morte. Isso possibilita uma grande ampliação da compreensão do escopo da temática da morte em nossa vida mental. O segundo é que a definição das fantasias conscientes e inconscientes que estão relacionadas à perda dos objetos de desejo e da própria vida se organizam em função de diferentes lógicas de simbolização que estão atreladas a diferentes modalidades de angústia. Assim, uma fantasia em relação ao objeto pode estar marcada pela significação da castração das possibilidades desejantes do sujeito, por referir aos seus princípios morais, mas também pode significar também um sentimento de ameaça da integridade da unidade da experiência mental, sendo vivida como uma cisão e fragmentação do sentimento de identidade, por exemplo. Por fim, essas diferentes modalidades de relação com o objeto são a base para pensar a própria gênese da estrutura de personalidade como um todo.  Para a psicanálise, a identificação com o objeto materno e sua posterior perda são fundamentais para a constituição de uma unidade egoica, ou seja, um núcleo de identidade psíquica que se refere ao sentido de “eu”. Portanto, para a psicanálise, a identidade se constitui por meio da relação com o outro e o luto pela perda desse objeto primordial é o que origina a nossa capacidade de simbolizar, pensar, nomear; enfim, desejar!
Desse modo, para a abordagem psicanalítica, a elaboração do luto é condição fundamental para a constituição não só da unidade psíquica, mas também da diferenciação entre o eu e a realidade objetiva e compartilhada. Isso quer dizer que a psicanálise entende que nossa condição de seres simbólicos, desejantes e propriamente humanos depende de transcender o registro natural por meio da capacidade de simbolização que, paradoxalmente, depende da castração e da perda do objeto para se instituir. A elaboração do luto pelos objetos primordiais é o que enseja a entra no mundo propriamente simbólico e cultural humano, de forma que só a elaboração do luto pela perda do objeto permite encontrar novos destinos para o desejo. Em outras palavras, a psicanálise entende que nossa capacidade de transcendência da condição natural em direção à cultura – alçar o sublime, ou sublimar – é fruto da elaboração da nossa melancolia originária. Perdemos o seio materno e aprendemos a falar, com isso ganhamos um mundo de símbolos que passa a ser nosso próprio meio ambiente! Não é à toa que na tradição artística sempre se associou a capacidade de criar com a possibilidade de elaborar a dor em algo sublime, que comunica e nos toca por sua mais absoluta singularidade.
Esse percurso permite entender que na Psicanálise a questão da morte se torna uma analogia para conceber a gênese do desejo e do sujeito, por meio de um processo de elaboração do luto pela perda do objeto originário. Este processo ocorre por meio da identificação com o objeto materno e expressa sua angústia característica, a angústia pela perda do objeto, em um momento da gênese da personalidade que se costuma chamar de narcísico, em referência ao mito grego do apaixonamento para com a própria imagem refletida.
Há alguns modelos na teoria psicanalítica que definem a dinâmica própria do narcisismo, tais como a concepção de Freud de uma identificação narcísica na melancolia, a concepção de Klein de elaboração da posição depressiva e a concepção de Lacan da castração materna como condição da desilusão narcísica. Não nos interesse no escopo desta comunicação aprofundar esses detalhes. Basta entender que os diferentes momentos da vida envolvem um série de perdas constitutivas naturais e necessárias, que se organizam em torno de alguns conflitos estruturantes da personalidade.
 Nesse sentido, Judith Viorst, em seu livro Perdas Necessárias (1986), enumera os quatro tipos de perdas que passamos ao longo da vida e que, do ponto de vista psicanalítico, podem ser consideradas como:
·      Narcísicas Primárias: perdas relativas ao afastamento do corpo e do ser da mãe, e da transformação gradual em um ser à parte;
·      Edípicas: perdas relativas ao confronto com as limitações do nosso poder e potencial, e relativas ao ato de ceder ao que é proibido e ao que é impossível.
·      Narcísicas Secundárias: perdas ligadas à renúncia dos sonhos ou dos relacionamentos ideais, a favor da realidade humana das conexões imperfeitas, e também as perdas múltiplas da segunda metade da vida - a perda final, o abandono, a desistência.

A Morte na Cultura Pós-Moderna
Além de contribuir para a compreensão dos aspectos psicodinâmicos, a Psicanálise também possibilita uma compreensão da dinâmica presente nas representações sociais da morte na atualidade. Segundo Joel Birman, em seu livro Mal-Estar na Atualidade (2001), a subjetividade contemporânea é marcada por um ideal performático próprio das relações narcísicas da sociedade do espetáculo. Partindo da discussão nas ciências humanas sobre a pós-modernidade como forma própria da subjetividade contemporânea, esse autor chega a uma interpretação dessa condição de fragilidade e fluidez identitária, falta de segurança e confiança nas instituições, pluralidade de perspectivas, com fragmentação de referenciais e relativização de posições éticas, em que se destacam a violência e a predação do outro, com o risco iminente de perversão dos laços sociais. Para esse autor, e muitos outros psicanalistas, a subjetividade contemporânea carece de uma crise da função paterna própria da modernidade. Na perspectiva psicanalítica, são os ideais paternos que permitem a identificação com a moral cultural e social por meio da chama lei simbólica. A crise das instituições e da subjetividade moderna implica também uma crise desses ideais, de forma que a perda dessa referência segura ameaça romper o próprio tecido do laço social com violência, gerando então sintomas individuais e sociais amplamente disruptivos, em que a angústia propriamente narcísica é expressa.
O nome que os psicanalistas dão para a violência inominável que rompe nossas identidades e pensamentos, produzindo uma vivência traumática é pulsão de morte.  Os laços narcísicos contemporâneos expressam mais claramente a dinâmica das pulsões de morte, onde a expressão do prazer se confunde com a dor e o aniquilamento. Exemplos bem ilustrativos são as inibições e vazios próprios dos sintomas depressivos, ou o gozo excessivo e quase mortífero presente no diversos comportamentos adictivos. Segundo a perspectiva psicanalítica, quando as amarras simbólicas se perdem e o psiquismo é invadido por uma experiência que não pode ser elaborada, o regime de pensamento literalmente “sai do ar” e o sujeito cai em condutas impulsivas e impensadas que são sobretudo tentativas de “ligar     “ por meio de algum sentido os afetos que transbordam na mente. Essa repetição como forma de elaboração é típica dos chamados sonhos traumáticos, em que a pessoa revive involuntariamente um trauma no sonho como forma de dar sentido à experiência, incorporando-a em seu “eu”.
Curiosamente, esse tipo de dinâmica tem sido muito característica das representações contemporâneas sobre a morte. O que alguns autores têm assinalado é que a morte interdita não é mais a única representação social operante na atualidade. Apesar de em algumas dimensões a elaboração do luto e a experiência de perda de si mesmo ou do outro possam estar ainda mais excluídas e interditadas, pois há um imperativo de felicidade exarcebada operando como ideal de nossas relações sociais, o que se nota é também um exagerado fascínio em relação à violência e à brutalidade, com acentuada exposição do sofrimento, de forma que se pode falar, como sugere Maria Júlia Kóvacs, de uma verdadeira morte escancarada na atualidade. Assim, o que se observa hoje é que as pessoas cada vez menos tem disponibilidade para falar e elaborar suas frustrações e dores, mas também facilmente buscam em atos impulsivos reencenar e banalizar este mesmo sofrimento. Esse é o apelo dos esportes radicais e violentos, mas também do fascínio com a violência banalizada na imprensa e nos órgãos de comunicação. É o chamado “mundo cão” ou, como eu prefiro, a hiper-realidade do real.
Pois bem, essa paradoxal morte escancarada é a representação social própria de nosso contraditório mundo pós-moderno. Acredito que o modelo mais convincente para interpretar tamanha ambivalência e complexidade desses fenômenos está no aporte que a psicanálise, a partir de sua discussão do narcisismo, da angústia de perda do objeto e do trauma da pulsão de morte, pode trazer à discussão da questão da morte na contemporaneidade.
Em síntese, a representação da morte na atualidade não é mais apenas a morte interdita que precisa ser rehumanizada e reincluída na dinâmica simbólica social e individual. Ela se amplificou e se tornou extremamente contraditória, expressando simultaneamente tendências de isolamento com arroubos impulsivos e excessivos na direção de sua violenta celebração. Sua concretude e imediatez permitem facilmente a massificação e a banalização, caindo em pura barbárie. Isso faz com que a subjetividade contemporânea esteja sempre no limiar do absurdo e da ruptura. Com isso, a humanização do discurso sobre a morte ganha novos contornos e nuances, o que torna ainda mais necessário a discussão, compreensão e simbolização das questões da morte e do morrer, tanto no nível individual quanto no nível das ligações simbólicas sociais que podem amparar nosso eterno e constitutivo desamparo.

Bibliografia
ARIÉS, P. História da morte no ocidente: da idade média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003 (Originalmente publicado em 1977)
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
EIZIRIK, C. L.; BASSOLS, A. M. S. (orgs.) O Ciclo da vida humana: uma perspectiva psicodinâmica. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013.
KÓVACS, M. J. Educação para a morte. Psicologia Ciência e Profissão, 25(3): 484-497, 2005.
KUBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e a seus próprios parentes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VIORST, J. Perdas necessárias. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2005.

* Texto referente à palestra proferida em Presidente Prudente, no primeiro semestre de 2013. Gostaria de agradecer ao convite da Coordenadora do Curso de Psicologia Profa. Regina Gioconda de Andrade.
** Érico Bruno Viana Campos é psicólogo, mestre e doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É professor assistente doutor do departamento de psicologia da UNESP Bauru. Site pessoal: https://sites.google.com/site/ebcamposonline/. Blog: http://interpretacoesdacultura.blogspot.com.br/