Palestra de Abertura da XXVI Jornada de Psicologia da UNOESTE*
quarta-feira, 3 de julho de 2013
Morte e Luto na Contemporaneidade: notas para uma Palestra
Considerações Psicanalíticas sobre a Morte e o Luto:
Palestra de Abertura da XXVI Jornada de Psicologia da UNOESTE*
* Texto referente à palestra proferida em Presidente Prudente, no primeiro semestre de 2013. Gostaria de agradecer ao convite da Coordenadora do Curso de Psicologia Profa. Regina Gioconda de Andrade.
Palestra de Abertura da XXVI Jornada de Psicologia da UNOESTE*
Embora seja um horizonte fundamental da vida
e do ciclo vital humano, a morte é um fenômeno de estudos relativamente recente
de estudos psicológicos e interdisciplinares na área de saúde. Tendo estado por muito tempo velada e mesmo
excluída do âmbito social e cultural, a questão da morte ressurge com ampla
evidência no cotidiano, evidenciando a fragilidade de nosso desamparo
contemporâneo.
Érico Bruno
Viana Campos**
A cultura e a sociedade contemporâneas são marcadas pela ambiguidade:
multiplicidade de parâmetros, falência de instituições, relativização de
normas, infinitude de espaços, rapidez do tempo, fragilidade dos vínculos,
exarcebação dos conflitos e, sobretudo, explosões de violência. Na mesma época
em que os avanços da biotecnologia e da medicina nos levam a crer na
possibilidade da imortalidade, também se encontra o mais cruel descaso com a
vida humana. Em meio a tudo isso, o fascínio com os limites entre vida e morte
emerge com renovado interesse.
Não é à toa que é nesse mundo pós-moderno que a questão da morte saiu do
âmbito da tradição e dos costumes para cair propriamente no âmbito do saber
científico e dos cuidados à saúde. Para tanto, precisou romper tabus dentro da
própria tradição médica higienista e sanitarista que marcou a nossa
modernidade.
A proposta desta comunicação é
apresentar o campo da tanatologia e da psicologia da morte, discutindo suas
implicações no contexto da subjetividade contemporânea.
Por que falar de morte ainda é difícil?
A questão da morte é um assunto sagrado nas mais variadas culturas
humanas. Como tudo que é sacro, inspira fascínio e medo, promove rituais e
tradições, instaura tabus. Chama a atenção que a subjetividade moderna, marcada
pelo racionalismo e o universalismo, não tenha conseguido se apropriar da
questão da morte. Pelo contrário, nossa modernidade excluiu a morte como signo
do fracasso da vontade e poderes humanos.
Foi só a partir da crise da modernidade que a filosofia se permitiu tomar
a angústia diante da morte e a necessidade de transcendência da vida como uma
questão realmente fundamental de nossa condição humana. Foram os
existencialistas, imbuídos da melancolia que acompanhou as grandes guerras do
século XX, que resgataram o lugar da morte como horizonte constitutivo da
existência humana. De Heidegger e Sartre, passando por Camus, que afirmou o
suicídio como questão filosófica fundamental, esses autores puderam mostrar que
a questão do sentido da vida era o que havia de essencial na condição humana e
que esse sentido era fruto do limite dado pela morte. Em outras palavras, a
vida só vale à pena ser vivida e só encontra sentido porque está o tempo todo relativizada
e posta em perspectiva pelo vazio e pelo limite da mortalidade. A imortalidade
torna a vida insignificante e inumana, como tão bem ilustra a estória do conde
Fosca, no romance Todos os Homens são
Mortais, de Simone de Beuvoir.
No entanto, mesmo com essas preciosas indicações de filósofos e
humanistas, demorou ainda certo tempo para que os profissionais de saúde se
interessassem verdadeiramente pelas questões da morte. A medicina moderna,
modelo e matriz de todas as profissões e saberes na área de saúde, por muito
tempo ignorou a importância da morte ou, mais precisamente, encarou-a como uma
inimiga que deveria ser vencida e superada a qualquer custo. Isso levou a uma
verdadeira exclusão da morte do âmbito social, fazendo com que a morte ficasse
relegada ao silêncio desconfortável e confinada ao âmbito asséptico e impessoal
dos hospitais. Durante boa parte da escalada de conquistas da medicina
científica, de metade do século XIX até a metade do século XX, a morte foi
vista como algo a ser excluído e vencido, ou, em caso de derrota, como algo a
que cabia resignação, de forma íntima, digna e silenciosa. Somente a partir dos
anos 60 do século XX é que essa posição começou a mudar, por meio de pioneiros
na humanização da saúde que trouxeram justamente a necessidade de repensar o
lema da saúde a qualquer custo e a dar espaço para o acolhimento das angústias
envolvidas nos processos de elaboração dos lutos. Esse movimento levou à
criação e consolidação do campo da Psicologia da Morte e da Tanatologia.
Psicologia da Morte e Tanatologia
A Psicologia da Morte é uma área de aplicação e de estudos em psicologia
voltada para as questões envolvidas na morte como etapa do ciclo vital do
desenvolvimento humano e para os processos psíquicos de elaboração dos lutos em
nível individual e social. Portanto, consiste em um recorte temático que atravessa
as áreas mais tradicionais das Psicologias do Desenvolvimento, Clínica,
Hospitalar e Social em uma vocação interdisciplinar com outros campos e
profissões da Saúde compondo, então, uma sub-área da Tanatologia.
A Tanatologia, por sua vez, iniciou-se como um ramo da medicina
(tanatologia forense) com o propósito de estudar a morte e suas consequências
em uma abordagem clínica e anátomo-fisiológica. Com o tempo, foi se tornando um
campo mais interdisciplinar, com aportes da enfermagem, das ciências sociais,
da psicologia, etc., incluindo outros aspectos além dos métodos e concepções da
medicina tradicional.
A área teve como um dos seus pioneiros o médico canadense William Osler,
que publico o livro A Study of Death,
ainda em 1904. Mas os estudos intensificaram-se mesmo após a II Guerra Mundial.
Os principais pioneiros nesse campo foram os médicos Feifel, com The Meaning of Death (1959), e
Kübler-Ross, com Sobre a Morte e o Morrer
(1969). A partir dos anos 1970, a crescente interdisciplinarização e ampliação
do campo da saúde trouxe novos aportes, principalmente do campo da enfermagem,
uma vez que as questões dos cuidados dos pacientes terminais e da atenção aos
familiares acabavam sempre recaindo
sobre os profissionais dessa área.
No Brasil, os textos começaram a ser publicados e as práticas a ganhar
evidência a partir dos anos 1980, derivados do trabalho da crescente área da
psicologia hospitalar e da saúde. Nesse contexto, Wilma Torres criou o programa
pioneiro de Estudos e Pesquisas em
Tanatologia, na Fundação Getúlio Vargas. Um pouco depois, foram criados
dois laboratórios que até hoje são centros de referência: o Laboratório dos Estudos sobre o Luto, na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (LeLu – PUC/SP), por Maria Helena
Pereira Franco, e o Laboratório de
Estudos sobre a Morte, da Universidade de São Paulo (LEM – IPUSP), por
Maria Júlia Kovács.
Os Estágios de Reação à Morte
Elizabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíça radicada nos EUA, realizou
importantes estudo com doentes terminais, sendo pioneira na abertura de espaços
de discussão sobre a morte no contexto dos hospitais, por meio de seminários
que funcionavam no modelo de grupos de encontro focados na discussão da
experiência de luto e morte. Nesse trabalho, acabou por sistematizar uma escala
de estágios de reação à morte que se tornou bastante popular na psicologia
médica e, depois, no senso comum. Trata-se dos estágios pelos quais os
pacientes passam desde o momento em que tomam conhecimento do prognóstico de
alta possibilidade de mortalidade. Esses estágios não se apresentam
necessariamente em ordem cronológica ou se apresentam de forma exclusiva na
experiência do paciente, mas costumam se desenrolar ao longo dessa ordem no
processo de aceitação da morte. São eles: negação,
revolta, barganha, depressão e aceitação.
A negação é o primeiro estágio, que diz respeito à reação de negar a
realidade do fato da morte, considerando-a uma impossibilidade, uma falsidade,
um exagero, um erro de diagnóstico, uma falta de fé; enfim, qualquer coisa que
ateste que a morte não é um fato imperativo e inevitável. Assim, vai desde a
negação mais imediata, presente em frases como “Não. Não pode ser!” ou “Vocês
estão brincando comigo!”, até posições mais resistentes e duradouras em que a
pessoa desenvolve pensamentos compulsivos e mesmo delirantes na busca de uma
cura. Trata-se de uma reação irracional contra o susto e a perplexidade diante
da morte.
A revolta aparece quando finalmente o sujeito reconhece que a
iminência da morte é um fato e que, como se costuma dizer de forma mais
popular, “cai a ficha” de que se vai provavelmente morrer e precisa se lidar
com isso. Esse reconhecimento leva a uma grande revolta que se expressa na
famosa frase “Por que eu?”, que nada mais expressa do que a necessidade humana
de encontrar sentido naquilo que não há. É nesse estágio que o sujeito começa a
se indagar sobre o que fez de bom ou de mau em sua vida que pode ter sido o
motivo para a punição máxima da morte. Inicialmente essa revolta é pura dor e
desespero. Depois, ela vai se organizando na forma de um raciocínio mais ou
menos racional em busca de causas, motivos e responsáveis. Esse recenseamento
moral da vida leva a algumas conclusões que serão então mobilizadas em um
processo de barganha com a morte,
consigo e/ou com Deus. Esse já é o próximo estágio, em que a pessoa então faz
uma negociação mais ou menos consciente para ganhar mais tempo. É quando se
fazem as promessas e pedidos, expressos nas frases do tipo “Gostaria de viver
até a formatura dos meus filhos” ou “Não me deixe morrer antes do meu
aniversário!”. O estágio de barganha pode ser bastante longo e complexo, pois,
a cada nova articulação de sentido e tentativa de resolução, o sujeito pode
voltar a pontos de maior revolta ou de negação, descontruindo acordos e propondo
novos. Mas, invariavelmente, a realidade imperativa da morte se impõe e essas
negociações ilusórias acabam por se esgotar. É aí, então, que o sujeito cai na
tristeza e na depressão.
Somente nesse quarto estágio é que
se considera que o processo de luto se instaura efetivamente. No estágio de
depressão há um recolhimento introspectivo no qual o sujeito elabora
solitariamente e silenciosamente a perda de si mesmo. O processo de luto muitas
vezes se completa e leva o sujeito ao quinto e último estágio, a aceitação, mas pode ocorrer uma
suspensão e congelamento do processo de luto, o que é chamado de luto congelado.
No luto congelado, o processo de luto é adiado e diferido, não encontrando
resolução e não deixando também o sujeito se desligar do objeto de amor perdido.
Nesses casos é que normalmente o sujeito entra em um estado depressivo
patológico que pode se cronificar e persistir por muito tempo. É nesse estágio,
portanto, que o processo costuma paralisar, levando à necessidade de um
acompanhamento mais cuidadoso por parte dos familiares e amigos que pode
incluir o apoio de profissionais de saúde e até de acompanhamento
psicoterapêutico. De qualquer forma, quando o processo de luto é finalizado,
chega a aceitação da condição de morte iminente, na qual o sujeito se resigna e
começa a se desligar dos objetos em vida. Nesse estágio há um certo alívio por
meio de um sentimento de liberdade e de transcendência, o qual possibilita ao
sujeito concluir seus vínculos e sua história pessoal. Esse é o momento
propriamente de despedida, que quando não é alcançado ou efetivado, deixa um
grande ressentimento e sentimento de culpa nas pessoas.
Os estágios foram inicialmente
definidos para descrever o processo dos pacientes em relação à própria morte,
mas acabam por compreender a dinâmica do processo de luto como um todo, o que
envolve também familiares e cuidadores e também situações de perda que não
remetem diretamente à morte, tal como o término de uma relação, a mudança de
emprego ou de cidade e assim por diante.
História Social da Morte
Outro autor que é referência fundamental na instauração do campo da
Tanatologia é o historiador social francês Philippe Ariés, que descreveu, em
sua História da Morte no Ocidente
(1977), algumas representações sociais da morte na passagem da idade média para
a modernidade. Esse trabalho, por sua vez, é um contraponto necessário de sua
análise da constituição social da infância e da família na cultura ocidental
moderna. A tese do autor é que a constituição da infância como categoria social
própria da modernidade é simultâneo à desvalorização da tradição e do
enraizamento coletivo próprio da sociedade feudal. A infância passou a ser
valorizada na medida em que a família patriarcal foi se tornando nuclear e
apartada das grandes balizas da tradição. O amparo que os sujeitos encontravam
no passado e na tradição passou a ser compensado por um investimento nas gerações
futuras. No que propriamente nos interessa, cabe indicar que isso se deu
concomitantemente à desvalorização de um lugar social para a morte que era
resguardado nas culturas tradicionais como a cultura feudal da idade média
ocidental. Essa análise levou o autor a propor certas representações sociais da
morte em nossa cultura ocidental. Representações sociais são conjuntos de
ideias, crenças e conceitos próprios de um grupo social que servem para
orientar suas interações e explicar os fenômenos cotidianos. São uma espécie de
teoria prática do senso comum, mas diferentemente das representações mentais
clássicas, que são individuais, essas são fruto da interação social e se
consolidam na forma de concepções propriamente histórico-culturais.
Ariés faz um extenso apanhado da cultura do período feudal, resgatando a
história dos costumes e do cotidiano no tocante aos rituais ligados à morte. Na
sua descrição, ressalta que a morte era uma figura onipresente no contexto da
cultura medieval. Além da onipresença da moral religiosa, com sua ideia de
julgamento final e de salvação pela fé, e das imposições reais da realidade que
deixavam a vida humana muito precária naqueles tempos (epidemias, fome,
guerras, desastres naturais), o mundo feudal possuía uma série de tradições,
embasadas na estrutura da família patriarcal, que davam amparo e sentido social
à experiência da morte. A morte era um verdadeiro “acontecimento social”. Os
moribundos ficavam em casa, sob os cuidados da família, recebendo visitas de
parentes e agregados por vários dias, em que tinham a possibilidade de elaborar
e ressignificar os vínculos. Os rituais religiosos e comunitários (missa, cortejo,
homenagens, etc.) tinham um peso significativo. Enfim, a experiência era
pública, coletiva e simbólica. Isso fazia da morte um acontecimento trágico,
doloroso, mas parte necessária da vida cotidiana humana, o que configura uma
representação da morte domada ou contida por amarras e ritos sociais.
Com o fim da idade média e início da modernidade, as amarras tradicionais
e coletivas que amparavam a morte começaram a progressivamente se perder. Começou
a prevalecer uma visão individualista e racionalista de sujeito, levando a uma
restrição cada vez maior do campo dos afetos para a intimidade das famílias. Isso
fez com que a questão da morte passasse de um âmbito mais público para a
dimensão mais restrita da privacidade familiar. A expressão afetiva foi
bastante excluída da dimensão pública na primeira modernidade, que foi extremamente
marcada pelo racionalismo e universalismo. Mas isso não levou, imediatamente, a
um esvaziamento ou desconsideração dos processos de luto e da importância simbólica
da morte para a vida humana. Pode-se dizer que durante o Renascimento e o
Iluminismo, ou seja, até o final da idade moderna clássica (final do século
XVIII), a morte continuou sendo considerada parte constitutiva e essencial da
condição humana, mas houve um deslocamento progressivo dela do âmbito público e
coletivo para o privado e familiar. Esse progressivo movimento de tornar a
vivência da morte singular e afetiva levou, na primeira metade do século XIX,
por meio do movimento romântico, a um período de exacerbação e valorização da
morte. Esse é o período em que a melancolia, o sofrimento pelo amor impossível
e a idealização da morte foram extremamente valorizados, em especial na
literatura.
Porém, com a constituição da medicina científica e seu progressivo avanço
ao longo do século XIX, a questão da morte foi sendo escamoteada do domínio
público e ficando cada vez mais restrita ao dispositivo por excelência da
medicina, o hospital geral. Isso fez com que da segunda metade do século XIX
até a primeira do XX passasse a imperar uma nova figura da morte: a morte interdita. Essa é a representação
social que impera durante o auge do domínio do saber e da prática médica sobre
o campo da saúde. Nela, a morte tem um caráter totalmente negativo. Como
apontamos anteriormente, a morte aparece como uma derrota e uma vergonha, que
precisa ser excluída da visibilidade social e restrita ao âmbito das
instituições hospitalares. Mesmo ali, no hospital, a morte se torna um tabu.
Não cabe ao médico falar dela, no máximo comunicar com eufemismos; não cabe ao paciente
saber sobre ela; ninguém pode falar sobre o assunto, pois traz angústia e
mal-estar. Essa postura é a que ainda domina o nosso senso comum, em que se
acha que o paciente em risco de vida não tem direito de saber sobre sua
condição, pois isso apenas irá deixa-lo mais deprimido, desesperado e
fragilizado. Trata-se do famoso pacto do silêncio em torno da morte, que deixa
todos reféns do mal-estar do não-dito e a um passo do luto congelado. É a
principal causa do ressentimento posterior de não poder ter se despedido, pois
não se podia falar a partir da condição reconhecimento da inevitabilidade do
fim.
Foi essa visão da morte como derrota, vergonha, mal-estar, que deveria
ser combatida a qualquer custo, própria da representação da morte interdita,
que levou ao movimento de rehumanização das questões em torno do luto e dos
cuidados à saúde de pacientes terminais e em risco de vida que culminou na área
de Tanatologia e de Psicologia da Morte, cuja elaboração levou a uma
consideração mais ampla da morte como parte do ciclo vital do desenvolvimento
humano.
Morte, Desenvolvimento e Sofrimento Humano
A Psicologia da Morte foi
responsável pela introdução das discussões sobre a morte como horizonte do
ciclo vital humano. Isso se deu de diferentes maneiras e em diferentes
perspectivas teóricas e problemáticas práticas. No geral, podemos dizer que
atualmente se considera que a integração do medo da morte à estrutura de
personalidade é uma parte necessária no desenvolvimento humano. Do mesmo modo,
entende-se que conflitos na elaboração desse processo contribuem para a
produção se sintomas e sofrimento psíquico. Nesse sentido, mais do que sintomas
pontuais ligados a situações ou objetos específicos, entende-se que a
elaboração da perda de objetos primordiais de identificação é parte importante
da estruturação da própria personalidade do sujeito. O enfrentamento da morte é
uma experiência que recebe diferentes significações, interpretações e destinos
a depender do momento do desenvolvimento psíquico, por isso deve-se considerar
as peculiaridades específicas de cada período do desenvolvimento e as
circunstâncias da morte para que se tenha uma compreensão mais abrangente de
suas repercussões na família e no meio social em que a pessoa está (ou estava)
inserida. Embora os níveis de simbolização e pensamento possam ser diferentes a
depender do momento do desenvolvimento, há algumas características comuns a
todo processo de enfrentamento de questões de vida e morte. Em geral,
entende-se que o processo de morrer leva a pessoa a regredir a ideais e
relações predominantemente infantis e a um modelo de resposta emocional
infantil, o que serviria como defesa contra a percepção da ameaça de extinção. Nesse
sentido, a necessidade de superar a morte consistiria o principal motivo para o
desenvolvimento da cultura humana, ou seja, o impulso criativo humano que
origina a cultura é motivado por uma necessidade de não ser esquecido. Em
outras palavras, é o clássico adágio de que as pessoas morrem, mas os símbolos
permanecem, de forma que é preciso deixar um legado reconhecido pelos outros (“uma
árvore, um livro, um filho...”).
Embora tenha se desenvolvido por muito tempo à parte das discussões da
Tanatologia e da Psicologia da Saúde, a Psicanálise toma as questões sobre a
morte como um aspecto central de sua concepção de homem e traz uma série de
contribuições importantes para a compreensão dos processos psicodinâmicos
envolvidos na elaboração da morte de si mesmo e dos outros. Nessa perspectiva,
a morte também é entendida como horizonte da vida, condição de nosso desejo e
fonte última de nossas angústias, mas, muitas vezes, essas contribuições não
são devidamente compreendidas. Isso se dá porque a questão da elaboração da
perda é tão central para a compreensão psicanalítica de homem que os
psicanalistas não se preocuparam em desenvolver uma teoria mais específica
sobre as perdas reais e efetivas que as pessoas precisam enfrentar em situações
emergenciais. A psicanálise desenvolveu-se tradicionalmente como uma
psicoterapia “profunda”, isto é, como uma técnica que visava abordar as
fantasias e construções imaginárias que organizam a personalidade geral do
indivíduo. Nesse sentido, costumava-se dar pouca importância para questões mais
imediatas da vida, entendendo que um sujeito adulto teria condições mínimas de
lidar com suas próprias limitações e castrações. Foi só com a ampliação da
escuta analítica para outros enquadres e demandas institucionais, como a
psicologia hospitalar e da saúde, que a questão do luto diante da morte efetiva
e seu manejo passou a ser enfocado. Talvez por essas razões ainda se encontre
poucos trabalhos de cunho psicanalítico na área de psicologia da morte.
O medo da morte classicamente foi tratado em psicanálise como análogo à
angústia de castração, portanto fruto de deslocamento do desejo sexual. Do
mesmo modo, costumava-se dizer que no inconsciente não haveria representação da
morte, o que justificaria o desinteresse pelo tema. Contudo, no final de sua
obra, Freud passou a reconhecer a importância da morte na constituição da
personalidade, por meio da hipótese da pulsão de morte como o mais fundamental
da pulsão.
Assim, podemos entender a morte como uma realidade presente desde o
nascimento, que desperta numerosas fantasias inconscientes e as correspondentes
defesas contra elas. A partir disso, podemos entender que a abordagem
psicanalítica tem pelo menos três contribuições importantes para a essa área. O
primeiro é referir as representações sobre a morte e a perda ao registro do
desejo inconsciente, revelando a riqueza da vida de fantasia em torno das
significações e sentidos da morte. Isso possibilita uma grande ampliação da
compreensão do escopo da temática da morte em nossa vida mental. O segundo é
que a definição das fantasias conscientes e inconscientes que estão
relacionadas à perda dos objetos de desejo e da própria vida se organizam em
função de diferentes lógicas de simbolização que estão atreladas a diferentes
modalidades de angústia. Assim, uma fantasia em relação ao objeto pode estar
marcada pela significação da castração das possibilidades desejantes do
sujeito, por referir aos seus princípios morais, mas também pode significar
também um sentimento de ameaça da integridade da unidade da experiência mental,
sendo vivida como uma cisão e fragmentação do sentimento de identidade, por
exemplo. Por fim, essas diferentes modalidades de relação com o objeto são a
base para pensar a própria gênese da estrutura de personalidade como um
todo. Para a psicanálise, a
identificação com o objeto materno e sua posterior perda são fundamentais para
a constituição de uma unidade egoica, ou seja, um núcleo de identidade psíquica
que se refere ao sentido de “eu”. Portanto, para a psicanálise, a identidade se
constitui por meio da relação com o outro e o luto pela perda desse objeto
primordial é o que origina a nossa capacidade de simbolizar, pensar, nomear;
enfim, desejar!
Desse modo, para a abordagem psicanalítica, a elaboração do luto é
condição fundamental para a constituição não só da unidade psíquica, mas também
da diferenciação entre o eu e a realidade objetiva e compartilhada. Isso quer
dizer que a psicanálise entende que nossa condição de seres simbólicos,
desejantes e propriamente humanos depende de transcender o registro natural por
meio da capacidade de simbolização que, paradoxalmente, depende da castração e
da perda do objeto para se instituir. A elaboração do luto pelos objetos
primordiais é o que enseja a entra no mundo propriamente simbólico e cultural
humano, de forma que só a elaboração do luto pela perda do objeto permite
encontrar novos destinos para o desejo. Em outras palavras, a psicanálise
entende que nossa capacidade de transcendência da condição natural em direção à
cultura – alçar o sublime, ou sublimar – é fruto da elaboração da nossa
melancolia originária. Perdemos o seio materno e aprendemos a falar, com isso
ganhamos um mundo de símbolos que passa a ser nosso próprio meio ambiente! Não
é à toa que na tradição artística sempre se associou a capacidade de criar com
a possibilidade de elaborar a dor em algo sublime, que comunica e nos toca por
sua mais absoluta singularidade.
Esse percurso permite entender que na Psicanálise a questão da morte se
torna uma analogia para conceber a gênese do desejo e do sujeito, por meio de
um processo de elaboração do luto pela perda do objeto originário. Este
processo ocorre por meio da identificação com o objeto materno e expressa sua
angústia característica, a angústia pela perda do objeto, em um momento da
gênese da personalidade que se costuma chamar de narcísico, em referência ao mito grego do apaixonamento para com a
própria imagem refletida.
Há alguns modelos na teoria psicanalítica que definem a dinâmica própria
do narcisismo, tais como a concepção
de Freud de uma identificação narcísica na melancolia, a concepção de Klein de elaboração
da posição depressiva e a concepção de Lacan da castração materna como condição
da desilusão narcísica. Não nos interesse no escopo desta comunicação
aprofundar esses detalhes. Basta entender que os diferentes momentos da vida
envolvem um série de perdas constitutivas naturais e necessárias, que se
organizam em torno de alguns conflitos estruturantes da personalidade.
Nesse sentido, Judith Viorst, em
seu livro Perdas Necessárias (1986),
enumera os quatro tipos de perdas que passamos ao longo da vida e que, do ponto
de vista psicanalítico, podem ser consideradas como:
·
Narcísicas
Primárias: perdas relativas ao afastamento do corpo e do ser da mãe, e da
transformação gradual em um ser à parte;
·
Edípicas:
perdas relativas ao confronto com as limitações do nosso poder e potencial, e
relativas ao ato de ceder ao que é proibido e ao que é impossível.
·
Narcísicas
Secundárias: perdas ligadas à renúncia dos sonhos ou dos relacionamentos
ideais, a favor da realidade humana das conexões imperfeitas, e também as perdas
múltiplas da segunda metade da vida - a perda final, o abandono, a desistência.
A Morte na Cultura Pós-Moderna
Além de contribuir para a compreensão dos aspectos
psicodinâmicos, a Psicanálise também possibilita uma compreensão da dinâmica
presente nas representações sociais da morte na atualidade. Segundo Joel Birman,
em seu livro Mal-Estar na Atualidade
(2001), a subjetividade contemporânea é marcada por um ideal performático
próprio das relações narcísicas da sociedade do espetáculo. Partindo da
discussão nas ciências humanas sobre a pós-modernidade como forma própria da
subjetividade contemporânea, esse autor chega a uma interpretação dessa
condição de fragilidade e fluidez identitária, falta de segurança e confiança
nas instituições, pluralidade de perspectivas, com fragmentação de referenciais
e relativização de posições éticas, em que se destacam a violência e a predação
do outro, com o risco iminente de perversão dos laços sociais. Para esse autor,
e muitos outros psicanalistas, a subjetividade contemporânea carece de uma
crise da função paterna própria da modernidade. Na perspectiva psicanalítica, são
os ideais paternos que permitem a identificação com a moral cultural e social
por meio da chama lei simbólica. A crise das instituições e da subjetividade
moderna implica também uma crise desses ideais, de forma que a perda dessa
referência segura ameaça romper o próprio tecido do laço social com violência,
gerando então sintomas individuais e sociais amplamente disruptivos, em que a
angústia propriamente narcísica é expressa.
O nome que os psicanalistas dão para a violência
inominável que rompe nossas identidades e pensamentos, produzindo uma vivência
traumática é pulsão de morte. Os laços narcísicos contemporâneos expressam
mais claramente a dinâmica das pulsões de morte, onde a expressão do prazer se
confunde com a dor e o aniquilamento. Exemplos bem ilustrativos são as
inibições e vazios próprios dos sintomas depressivos, ou o gozo excessivo e
quase mortífero presente no diversos comportamentos adictivos. Segundo a
perspectiva psicanalítica, quando as amarras simbólicas se perdem e o psiquismo
é invadido por uma experiência que não pode ser elaborada, o regime de
pensamento literalmente “sai do ar” e o sujeito cai em condutas impulsivas e
impensadas que são sobretudo tentativas de “ligar “ por meio de algum sentido os afetos que transbordam na mente. Essa
repetição como forma de elaboração é típica dos chamados sonhos traumáticos, em que a pessoa revive involuntariamente um
trauma no sonho como forma de dar sentido à experiência, incorporando-a em seu “eu”.
Curiosamente,
esse tipo de dinâmica tem sido muito característica das representações
contemporâneas sobre a morte. O que alguns autores têm assinalado é que a morte
interdita não é mais a única representação social operante na atualidade.
Apesar de em algumas dimensões a elaboração do luto e a experiência de perda de
si mesmo ou do outro possam estar ainda mais excluídas e interditadas, pois há
um imperativo de felicidade exarcebada operando como ideal de nossas relações
sociais, o que se nota é também um exagerado fascínio em relação à violência e à
brutalidade, com acentuada exposição do sofrimento, de forma que se pode falar,
como sugere Maria Júlia Kóvacs, de uma verdadeira morte escancarada na atualidade. Assim, o que se observa hoje é que
as pessoas cada vez menos tem disponibilidade para falar e elaborar suas
frustrações e dores, mas também facilmente buscam em atos impulsivos reencenar
e banalizar este mesmo sofrimento. Esse é o apelo dos esportes radicais e
violentos, mas também do fascínio com a violência banalizada na imprensa e nos órgãos
de comunicação. É o chamado “mundo cão” ou, como eu prefiro, a hiper-realidade do real.
Pois bem, essa paradoxal morte escancarada é a
representação social própria de nosso contraditório mundo pós-moderno. Acredito
que o modelo mais convincente para interpretar tamanha ambivalência e
complexidade desses fenômenos está no aporte que a psicanálise, a partir de sua
discussão do narcisismo, da angústia de perda do objeto e do trauma da pulsão
de morte, pode trazer à discussão da questão da morte na contemporaneidade.
Em síntese, a representação da morte na atualidade
não é mais apenas a morte interdita que precisa ser rehumanizada e reincluída na
dinâmica simbólica social e individual. Ela se amplificou e se tornou
extremamente contraditória, expressando simultaneamente tendências de
isolamento com arroubos impulsivos e excessivos na direção de sua violenta
celebração. Sua concretude e imediatez permitem facilmente a massificação e a
banalização, caindo em pura barbárie. Isso faz com que a subjetividade
contemporânea esteja sempre no limiar do absurdo e da ruptura. Com isso, a
humanização do discurso sobre a morte ganha novos contornos e nuances, o que
torna ainda mais necessário a discussão, compreensão e simbolização das
questões da morte e do morrer, tanto no nível individual quanto no nível das
ligações simbólicas sociais que podem amparar nosso eterno e constitutivo
desamparo.
Bibliografia
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BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de
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EIZIRIK, C. L.; BASSOLS, A. M. S. (orgs.) O Ciclo da vida humana: uma perspectiva psicodinâmica. 2. ed. Porto
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25(3): 484-497, 2005.
KUBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o morrer: o que os doentes
terminais têm para ensinar a médicos, enfermeiras, religiosos e a seus próprios
parentes. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
VIORST, J. Perdas necessárias. 4. ed. São Paulo: Melhoramentos, 2005.
** Érico Bruno Viana Campos é psicólogo, mestre e
doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
É professor assistente doutor do departamento de psicologia da UNESP Bauru.
Site pessoal: https://sites.google.com/site/ebcamposonline/.
Blog: http://interpretacoesdacultura.blogspot.com.br/
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Bom dia, gostaria de saber se o presente texto se encontra publicado em meios físicos ou virtuais de modo a citar sua referência bibliográfica completa em um artigo que estou escrevendo para um congresso. Se for possível enviar resposta para meu email anapaula.brandao@yahoo.com.br
ResponderExcluirDesde já agradeço a atenção e aproveito para parabenizar pelo blog.