O Campo da Psicologia e o Segredo da Auto-Ajuda
A literatura de auto-ajuda é uma tendência
crescente na cultura contemporânea que muitas vezes se confunde com as
publicações de divulgação científica do campo das psicologias. Embora a comunidade acadêmica e profissional
tenha razão em criticar a banalização que esse segmento proporciona, o apelo de
tal discurso pode ser explicado pela própria configuração do espaço psicológico
que emerge na modernidade
Érico Bruno
Viana Campos*
Os leitores das revistas semanais de grande circulação e observadores de
estantes em livrarias aprenderam a reconhecer um segmento editorial que cada
vez mais ganha destaque, a chamada “literatura de auto-ajuda”. Nos últimos
anos, vários títulos desse rótulo se tornaram best-sellers, como O Segredo,
Quem Somos nós? e A Cabana,
gerando inclusive versões cinematográficas de relativo sucesso, a tal ponto que
podemos hoje reconhecer uma certa cultura em torno desse termo. Mas o que é a
auto-ajuda, afinal? O que justifica seu encanto no âmbito da sociedade de
consumo contemporânea? Minha hipótese é que a auto-ajuda seja um sintoma da
própria configuração do espaço psicológico que emerge na modernidade ocidental,
constituindo uma espécie de reverso do saber psicológico que toca na própria
alma da condição humana universal.
Caracterização do fenômeno da auto-ajuda
O termo auto-ajuda, se refere a qualquer iniciativa auto-gerida de
indivíduos e/ou grupos de buscar aprimoramento profissional, econômico, físico,
intelectual, emocional ou espiritual. É aplicado de forma bastante
indiscriminada no campo da saúde, da educação e dos negócios, tendo como
principal reflexo um mercado editorial específico, conhecido como literatura de auto-ajuda.
Embora seja um segmento muito diversificado, que vai de recursos de
aprendizagem profissional até a orientação espiritual, a auto-ajuda apresenta
algumas características gerais comuns. Dentre elas está a apresentação de fórmulas
supostamente simples e esquemáticas que proporcionam mudança radical na vida
profissional e pessoal (“Siga os três passos do sucesso!”). Outra
característica recorrente é a presença de afirmações imperativas voltadas para
a atuação concreta do leitor em seu meio com ênfase no pensamento positivo como
fomento à realização e ao sucesso (“Querer é poder!”). Também é geral nestes
livros a alegação de um embasamento desses princípios em um conjunto de
técnicas com suposto respaldo científico e institucional (“Comprovado por
cientistas de Harvard!”). Igualmente recorrente é a caracterização da atividade
do leitor como uma habilidade emocional expressiva e singular (“Siga sua
intuição para encontrar seu lugar no mundo!”) e a presença massiva de recursos
didáticos, ilustrativos e retóricos, dando um tom de casualidade, proximidade e
facilidade para o leitor (“É extremamente fácil. Veja!”).
Essas características dão um tom de apoio e suporte para o leitor, que se
vê amparado de um conjunto de técnicas e estratégias que podem garantir seu
sucesso pessoal e profissional. Portanto, não são livros que fomentam a
reflexão ou o questionamento de si mesmo ou da realidade, mas indicativos de
ação efetiva e imediata sobre o meio circundante da pessoa. Uma característica
interessante é que quase sempre as questões pessoais, emocionais e espirituais estão
articuladas ao sucesso profissional e à possibilidade de visibilidade social e
de consumo. Isso mostra o quanto esse fenômeno está adaptado ao contexto da
sociedade de consumo e às seduções que o modelo econômico vigente imprime à
subjetividade contemporânea. Não é à toa que o grande nicho dessa cultura seja
o meio empresarial e corporativo, por meio dos palestrantes que vendem suas
fórmulas de sucesso aos crédulos consumidores de suporte emocional. Sem dúvida,
é no registro do “mercado” que o fenômeno da auto-ajuda se instaura e floresce.
Breve história do gênero
Curiosamente, o primeiro livro do gênero, entitulado “Auto-Ajuda” (Self Help) foi escrito pelo ativista e
reformador britânico Samuel Smiles (1812-1904) em 1859. Naquele tempo, o auge
da Era do Capital, segundo Eric
Hobsbawn, o capitalismo industrial e financeiro se consolidava no ocidente,
sufocando as revoluções liberais que alçaram a classe burguesa ao poder. O
individualismo liberal e o Estado disciplinar se consolidavam como
organizadores da vida social, desorganizando a vida comunitária e a consciência
de classe, deixando os trabalhadores sem outra alternativa de amparo social que
não ajudarem a si mesmos solitariamente. Essa é a tônica e o intento do livro
de Smiles, uma espécie de manual de
individualismo para uma era de desilusão coletiva. Portanto, podemos dizer que
a literatura de auto-ajuda nasce sob o signo da crise da subjetividade. No
entanto, o gênero só fará sucesso e se tornará um fenômeno a partir da segunda
metade do século XX, no contexto do pós-guerra e da última faceta do
capitalismo: a economia pós-industrial e a sociedade de consumo. Nesse sentido,
o grande best-seller pioneiro do
gênero é “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”, de 1937, do empresário americano
Dale Carnegie (1888-1955). Este livro já pode propriamente ser caracterizado
como um manual de auto-ajuda, com todo o apelo mercadológico que a cultura
americana do self made man e do business man pôde imprimir ao gênero. O
fenômeno se instaura nos anos dourados de 1950 e 1960, mas é só com a crise
econômica e a instabilidade política do final dos anos 1970 que o seu apelo
cresce. Foi então em meados dos anos 1980 que o New York Times criou uma
categoria específica de auto-ajuda em suas listas de mais vendidos, selando o
movimento como um gênero literário. Desde então, fomos nos acostumando a
reconhecer três gêneros literários nas listas de vendas de livros: ficção,
não-ficção e auto-ajuda.
Também foi a partir dos anos 1980 que a literatura de auto-ajuda se
instalou no Brasil. De início, ela foi marcada por um certo apelo místico e
alternativo típico dos movimentos hippie
e de contracultura dos anos 1960-1970, com uma marca de espiritualidade típica
de nossas tendências ao sincretismo religioso. A partir dos anos 1990, contudo,
ela passou a se caracterizar mais claramente no ramo dos negócios e do
marketing. O grande marco desse momento foi o Dr. Lair Ribeiro, com seus treinamentos
motivacionais baseados nas técnicas de programação neurolinguística, que são
oferecidos até hoje com o sugestivo título de Poder Mental Transformacional (PMT): “inteligência aplicada à
evolução”. A partir de então já se via a articulação clara entre técnicas de
motivação e marketing na gestão da vida pessoal e profissional que tanto
caracteriza o gênero. Essa tônica prevalece até hoje, de forma que é no mercado
da chamada “cultura organizacional” que o gênero floresce e se sustenta
prioritariamente, por meio de ciclos de palestras e treinamentos empresariais
que geram as publicações que chegam ao público em geral. Por outro lado, convém
ressaltar que devido às características sincréticas da cultura brasileira, esse
gênero acaba se articulando com o de espiritualidade, misticismo e esoterismo.
Em particular, temos no Brasil um filão paralelo da literatura de auto-ajuda
que se desenvolve prioritariamente a partir dos praticantes e simpatizantes da
religião espírita, cujos grandes expoentes são os livros psicografados por
médiuns como o pioneiro Chico Xavier e a mais recente Zíbia Gasparetto. Nessa
vertente, o marketing e a promoção do
sucesso são menos presentes, dando lugar ao fomento do crescimento emocional e
espiritual, mas as linhas gerais do discurso da auto-ajuda permanecem. Além
disso, o grau de sobreposição e mesmo confusão entre os níveis psicológico,
espiritual e empresarial, ou entre perspectivas téorico-metodológicas e mesmo
posições éticas e políticas é tamanho que fica muito difícil caracterizar ou
discriminar exatamente as diferentes vertentes do fenômeno.
De qualquer forma, o fato é que por maior que seja o sucesso que essas
publicações alcançam, a literatura de auto-ajuda é considerada como um certo
“Lado B”, de caráter mercadológico, banalizado e massificado, das teorias e
práticas psicológicas consideradas científicas e acadêmicas, gerando atrito no
campo da reserva dos mercados entre os profissionais “psi” e os autores desse
tipo de literatura com suas práticas. É notável nas prateleiras das livrarias
como o segmento de psicologia se tornou um apêndice do genérico “auto-ajuda/espiritualidade”.
Nota-se, portanto, como a questão não se resume à determinação do que é mais
prestigiado, ou entre o que é de “elites” e o que é para as “massas”, mas à
própria delimitação das identidades profissionais e suas práticas legítimas.
Nesse sentido, a auto-ajuda acaba se configurando como uma problemática de
mercado no campo da distinção entre práticas “psi” e práticas dita
“alternativas”. O exemplo mais recente desse embate é a nova modalidade de
orientação de carreira/vida pessoal chamada de coaching, que muitos psicólogos consideram uma modalidade
disfarçada de psicoterapia que foi desenvolvida especialmente para a prática
profissional de administradores e executivos. Isso sem falar que, por ser algo
que se desenvolve no mundo empresarial, que supostamente garante o sucesso e
que está na moda, o coaching goza de
grande prestígio e status, de forma
que precisa ser mais caro do que os tratamentos e práticas comuns.
Por conta disso é que a auto-ajuda é tomada com bastante desdém pelos
profissionais de psicologia que se consideram “sérios”. É por isso também que
pouco se fala desse fenômeno no campo propriamente psicológico. Ele é um
verdadeiro “resto”, um quase “lixo” das teorias e práticas psicológicas. No
entanto, a coisa não se configura com limites tão precisos como as posições
ideológicas costumam pintar. Há muitos psicólogos “sérios” que se rendem à
mesma lógica da auto-ajuda, sem falar que muitos livros de auto-ajuda acabam
sendo utilizados e divulgados por psicólogos em suas práticas. Isso sem falar
na imensa diversidade de práticas, perspectivas e modelos que se configuram e
articulam de forma incontrolável nesse amplo campo em que incidem as lógicas do
trabalho, da educação e da saúde. O que nós temos não é uma situação bipolar
entre “ciência e verdade” versus “mercado e propaganda”, como muitos nos levam
a crer. Na verdade, o crescimento dessa diversidade espelha muito bem as
tendências pós-modernas de fragmentação, relativização e “bricolagem” de
discursos e práticas sociais.
Em outras palavras, podemos dizer que a auto-ajuda não é um erro ou
acidente de percurso, mas uma expressão legítima da subjetividade na
atualidade. Da psicanálise aprendemos que tudo o que é sintomático é índice de
uma verdade que a consciência desconhece, mas que, no fundo a organiza.
Portanto, minha hipótese é que essa situação de escalada da auto-ajuda não é
circunstancial; pelo contrário, constitui um verdadeiro sintoma da configuração
do campo psicológico tal como se deu na modernidade.
O espaço psicológico: território da
ignorância
A história do campo nos mostra que o projeto da psicologia científica é
fruto de uma determinada configuração sócio-histórica e político-econômica dos
desdobramentos da modernidade ocidental, naquilo que Luis Cláudio Figueiredo
(inspirado em Foucault) chamou de emergência e queda do sujeito/indivíduo
moderno na produção dos saberes sobre a subjetividade. Essa configuração foi
responsável pela criação de um espaço de saber "psicológico", marcado
pela contradição e ambiguidade nas perspectivas éticas e epistemológicas a
respeito do homem e de sua subjetividade. A ideia, como expliquei melhor em
artigo anterior publicado nesta mesma revista (Cf. a matéria “A diversidade que
nos une”) é que somente com a crise da concepção de sujeito e indivíduo moderno
pôde surgir o projeto de uma psicologia científica. Esse espaço de dispersão
foi a matriz geradora de todos os projetos das chamadas "psicologias"
modernas e é marcado pela tensão entre três pólos de posicionamento ético com
relação ao ser humano: o romântico, o iluminista e o disciplinar. O pólo
iluminista concebe o homem como uma produção da razão e da vontade, dentro de
uma perspectiva liberalista e individualista de sociedade. O pólo romântico
concebe o homem como um potência expressiva e criativa que reencontra a unidade
e a identidade das tradições (Natureza, Nação, Povo, Verdade, Deus...) por meio
de uma comunhão afetiva. O pólo disciplinar, por sua vez, concebe o homem como
objeto de um mecanismo de controle tecnocrático e burocrático no sentido da
manutenção de uma pretensa ordem social racional e pública. Segundo essa
perspectiva de Figueiredo, expressa em alguns de seus livros ("Matrizes do
pensamento psicológico" e "A invenção do psicológico: quatro séculos
de subjetivação"), as diversas concepções epistemológicas e as diversas
teorias psicológicas desenvolvem-se a partir de alianças e oposições a estas
perspectivas éticas.
Isso quer dizer que as diversas psicologias nascem com a missão de lidar
com o “resto” e com o “lixo” produzido pelas ordens institucionais modernas que
se configuram no âmbito da família, da saúde, da educação e do trabalho. Cabe
aos “psi” desenvolverem uma prática de controle e ação sustentada em um saber
científico sobre as crianças mal-criadas e mal-educadas, os empregados
mal-treinados e mal-selecionados, os doentes mentais mal-adaptados e assim por
diante. Na sua tarefa de “reciclagem” e “tratamento” desse resíduo, os “psi” se
apoiam em suas matrizes epistemológicas e posicionamentos éticos, que são
múltiplos, diversos e contraditórios, criando assim um espaço de dispersão sem
qualquer perspectiva de unificação.
Falei bastante disso no meu artigo anterior, a quem remeto o leitor
interessado. O que eu trago de novo agora é chamar a atenção para o fato de que
Luis Cláudio Figueiredo chama o espaço psicológico de território da ignorância. Isso porque o grau zero do espaço
psicológico, ou seja, o ponto central de intersecção das bissetrizes dos seus
vértices é nulo. Em outras palavras, o lugar de equidistância entre os
discursos psicológicos, aquele em que todas as tensões incidem é, na verdade,
um vazio. Isso quer dizer que a tentativa de produzir um discurso homogêneo
sobre a subjetividade humana redunda em uma caracterização tão geral e
inespecífica que se torna inócua e banal. É como se na tentativa de dar conta
de todas as diferenças, acabássemos por ficar apenas com aquilo que é mais
universal. Da mesma forma, entende-se que a riqueza dos saberes psicológicos
está justamente na manutenção dessa tensão e dessa diversidade de perspectivas
e posições, o que faz de qualquer empreitada psicológica, necessariamente, uma indisciplina crítica. Todas as grandes
teorias psicológicas são importantes porque vão a fundo na exploração das
possibilidades e limites de certa concepção do que seja o psiquismo humano. Sua
força está justamente nessa especificidade e é o debate entre essas
perspectivas antagônicas que mantém o espaço psicológico vivo e dinâmico.
Uma boa metáfora para caracterizar o espaço psicológico é a de um sistema
atmosférico na forma de ciclone. Como se sabe, os grandes sistemas de
tempestade têm essa forma característica de um redemoinho, daí a sua
precipitação na forma de furacões e tornados. A força centrífuga do redemoinho
gera ondas de choque intensas, que devastam tudo a sua volta. No entanto, o
centro do sistema é estável e plácido, formando o chamado “olho” do furacão.
Assim, no olho do furacão não há conflito de forças antagônicas, apenas a
calmaria e a inércia do centro a qual todo o resto está referido. É uma imagem
poderosa e que se apresenta na própria configuração da matéria no nosso
universo, já que toda galáxia se organiza em configurações cíclicas por conta
da força de um grande buraco negro que a mantém unida. No centro do caos, há o
nirvana. Toda luz circula um poço de escuridão, assim como todo saber
circunscreve uma ignorância fundamental sobre o humano.
A questão é que quanto mais os saberes psicológicos tentam dar conta de
todos os pólos do espaço psicológico, mais eles adotam posturas ecléticas ou
sintéticas que tendem a empobrecer a riqueza do "psicológico". Esse
discurso de pretensa conciliação e eliminação das diferenças é encontrado nos
mais diversos níveis da produção de discursos sobre o espaço psicológico, desde
o senso comum da psicologia até a mais descarada literatura
"marqueteira" de auto-ajuda. Não é à toa que o ponto de
conjunção dos três pólos do psicológico - o centro geométrico deste espaço
- é o lugar da total ignorância e imobilidade. Seria como o olho de um furacão
- lugar de total inércia - ou o horizonte de eventos de um buraco
negro - local de plena invisibilidade. Isso quer dizer o seguinte: qualquer
perspectiva totalizadora na psicologia tende a se tornar completamente
inerte e, ainda por cima, converter-se em pura ideologia.
Pois bem, o que tudo isso nos diz sobre o fenômeno da auto-ajuda? Como
vimos, esse tipo de literatura se mantém pela reprodução desses chavões; do
enunciado de pretensas verdades absolutas por meio de expedientes simples; de
fórmulas mágicas que tudo resolvem imediatamente. Sem falar na falta de
critérios e de sustentação, na mistura desatinada de apelos afetivos, índoles
místicas, raciocínios pragmáticos e pretensas "técnicas" na
explicação do sofrimento humano e em sua cura. O que eu gostaria de contribuir
para essa discussão é na interpretação da estrutura
desse discurso, que é, justamente, o que faz com que a auto-ajuda, como um simulacro,
ocupe o centro do espaço psicológico, convertendo-se em ideologia que encobre
sua própria ignorância.
A fórmula da auto-ajuda
O segredo é: existe uma verdade! Ela pode ser encontrada por qualquer um
de nós, basta ter a atitude certa; basta querer e fazer a escolha certa. Essa
verdade é garantida pela ciência e por todas as autoridades de legitimação de
saber da cultura; é um caminho certo e garantido, basta dar o primeiro passo.
Esse caminho depende de uma atitude afetiva, emocional e expressiva, pois não é
um conhecimento racional, mas intuitivo, do mundo; é preciso, então, estar em
sintonia com essa atitude do universo. Embora seja da ordem da intuitividade e
da espontaneidade, existe uma "técnica" que pode ser ensinada, que é
legitimada pela "ciência" e pelo "saber". Em suma:
"Querer é poder. Basta tomar a atitude certa de sintonia com a verdade. A
ciência garante!"
Ora, não é isso o mais perfeito exemplo da aliança entre os pólos liberal,
romântico e disciplinar que configuram o espaço psicológico? Do pólo liberal
temos a manutenção da ilusão de uma soberania do sujeito que é dono de sua
razão, de sua vontade e de sua vida e, portanto, de seu destino. Esse é o maior
apelo da auto-ajuda, inclusive: a ilusão narcísica que mesmo na maior crise de
identidade eu possa sozinho resolver os problemas e me bastar. É a ilusão de
que ainda sou sujeito ativo da minha vida. Mas essa vontade individual de nada
adianta senão for respaldada por uma racionalidade instrumental impessoal e
disciplinadora como o discurso da competência científica. Por isso, por mais
que dependa da vontade do indivíduo, há a necessidade de um saber que garanta a
verdade e ao qual se deve submeter em troca de amparo. Esse é o segundo vértice, propriamente
disciplinar, de submissão a um regime totalitário de controles impessoais e
massificantes. Seu apelo também é forte, pois dá sentido de coletividade e de
identidade em troca de uma servidão voluntária. Mas há ainda outro vértice, que
é o da expressividade emocional propriamente romântica. Essa verdade não é uma
da ordem de uma racionalidade universal, mas algo da ordem de uma potência
criativa e singular. Há algo propriamente místico no sentido de uma comunhão
com a totalidade que é fruto de uma jornada muito pessoal do sujeito. Então há
também algo da ordem de uma passividade e de um caminho rumo a uma totalidade
misteriosa que é mais afetiva do que a frieza calculista dos dispositivos
disciplinares. Percebam que por mais que possam se articular, esses três pólos
são antagônicos entre si, pois afirmam um homem que é simultaneamente ativo e
passivo, autônomo e submisso, racional e afetivo, individual e coletivo, ou
seja, todas as contradições que permeiam a subjetividade ao longo da história
de nossa espécie. O problema é que os discursos de auto-ajuda tentam justamente
formar uma totalidade homogênea nessa dinâmica de opostos e, com isso, se
tornam perigosamente ideológicos e, por isso mesmo, extremamente sedutores.
Assim, podemos dizer que a literatura de auto-ajuda é nada mais que um
simulacro da crise da constituição subjetiva da modernidade do qual todos nós
somos herdeiros, inclusive a psicologia. Portanto, as psicologias e os
discursos de auto-ajuda referem-se a um mesmo contexto sócio-histórico de
origem, com a diferença que os segundos são uma versão mais homogênea e
ideológica dos primeiros. Mas isso não quer dizer que as psicologias não sofram
dos mesmos problemas que são explicitamente evidenciados nos discursos da
auto-ajuda, pelo contrário, o que se observa cada vez mais é uma dissolução
dessas fronteiras, na medida em que a sociedade pós-moderna do consumo, da
informação e da performance avança. Mas por mais que avance, esse afã humano
pela verdadeira e última verdade acaba sempre frustrado. Esse é o verdadeiro
segredo da fórmula da auto-ajuda: é preciso manter o mistério e a ilusão a um
palmo de distância, sempre a um triz de se esvanecer ou de se perder, como tudo
o que é mágico.
Diferentemente do que havia auge da tecnocracia e da razão instrumental
modernas, o mundo pós-moderno é marcado por uma busca pelo encanto perdido. Não
é à toa que a literatura de fantasia está se renovando, assim como as
paranoicas teorias da conspiração, sempre em busca de uma outra ordem simbólica
por trás da realidade compartilhada do senso comum. É claro que aqui estamos
falando do fenômeno dos livros de Dan Brown e seu paradigmático Código da Vinci, sobre a sociedade
secreta que guarda o segredo da descendência de Jesus Cristo e de Maria
Madalena, que alçou o gênero ao posto de ícone da cultura pop. Mas a demanda
pelo reencantamento do mundo é um pouco anterior, coincidindo, inclusive, com o
boom da auto-ajuda nos anos 1980. Foi
nessa primeira leva de misticismo ilustrado e disciplinado que Umberto Eco, o
famoso semiólogo italiano, escreveu o livro O
Pêndulo de Foucault. Podemos dizer que os livros de Dan Brown e congêneres
são uma versão fast-food da temática
que é trabalhada de forma densa e extensa por Eco nas mais de 600 páginas de
seu livro. Embora tenha um enredo muito mais complexo e uma perspectiva menos
maniqueísta e mais irônica da questão, a temática é a mesma: os intricados
meandros de um segredo guardado por gerações no seio de sociedades e seitas
secretas; um segredo que pode desestabilizar toda a ordem vigente de poder nas
instituições da cultura e na própria identidade do homem. Estão lá os maçons,
os templários, a riqueza simbólica das cidades europeias e a inesgotável
capacidade humana de buscar o sentido por trás de todo e qualquer acaso. O
autor explora divinamente essa angústia existencial que acompanha toda a
atividade hermenêutico-simbólica do homem que, no livro de Brown, é mera
coadjuvante de um thriller de ação!
Bem, não vou estragar a surpresa contando toda a história, apenas a sua
moral...
A moral da história é que o segredo é: manter o segredo!
Sim, incrédulo leitor, o segredo nada mais é acreditar que há um segredo.
É a crença e a fé de que o mundo se estrutura em torno de um sentido que nos
move! O homem é um ser simbólico, habitado pela linguagem. Chegamos assim em
uma segunda hipótese sobre o apelo da auto-ajuda: é um discurso que fomenta,
instiga e mantém nossa ilusão constitutiva no mistério e no segredo. A
auto-ajuda, em última instância, reassegura nossa crença de que há sentidos e
que esse é o sentido da vida humana.
Somente mais contemporaneamente os filósofos e acadêmicos passaram a
reconhecer que nossas culturas e nossas vidas nada mais são do que
"instalações" do humano: moradas de símbolos que construímos em torno
de nosso acaso constitutivo. Heidegger foi um dos pioneiros na chamada virada
linguística e pragmática na filosofia, quando a moderna concepção de sujeito
consciente e racional foi substituída por uma concepção menos autônoma e
positiva do que seja a subjetividade humana. Em sua ontologia existencial, ele
parte da concepção do ser (Dasein)
como uma abertura e disposição para a significação, entendendo que a linguagem
é o meio universal e constitutivo da experiência humana. Nessa perspectiva, o
ser é fundamentalmente uma negatividade, aquilo que sempre transcende às
possibilidades de nomeação e significação. Um herdeiro importante do pensamento
de Heidegger é Lacan, que articulou a problemática da subjetividade a outro
grande expoente das ciências da linguagem, o estruturalismo linguístico. Nessa
perspectiva, temos uma inversão nos papéis tradicionais acerca do pensamento.
Para o estruturalismo, a linguagem é que constitui o pensamento e as
identidades. É o sentido da linguagem que recorta o mundo e nós nos
constituímos passivamente por meio dessas operações simbólicas. Mais do que
isso, o estruturalismo vai definir que o sentido da linguagem é um produto da
diferença e que a significação não está nas coisas em si, mas nas relações que
os significantes ou palavras estabelecem entre si a partir da estrutura
simbólica universal. Essas transformações serão essenciais para uma
ressignificação da própria concepção de sujeito na psicanálise. Lacan mostrará
como o que é específico da condição humana é da ordem do desejo e a estrutura
do desejo remete a nossa capacidade simbólica. Em suma, a concepção de que o
desejo humano não tem um objeto específico, que ele é variável e fugaz, se alimentando
de sua própria efemeridade. Toda a força do desejo é que ele nunca se realiza,
pois quando se tem o que se deseja, subitamente aquilo perde a graça e o
encanto passa a estar logo mais adiante. Portanto, o desejo não tem essência,
não tem verdade última, não tem fim. A essência do desejo é o seu acaso e,
portanto, ele é uma negatividade fundamental de onde podem brotar todos os
nossos impulsos.
No final de sua obra, Lacan chamou de objeto
a essa coisa fundamental que habita o humano como uma pulsação sem nome, como
um furo em torno do qual gravita toda a subjetividade, tal qual a matéria envolve
o buraco negro no centro da galáxia ou a tempestade circunda o olho do furacão.
Estamos pois, de volta ao centro do espaço psicológico e ao território da ignorância.
Por isso o discurso da auto-ajuda é tão poderoso, pois ele aponta, sem revelar
para essa origem da condição humana e, com isso, traz amparo no desamparo. Mas
existem tantas outras coisas podem igualmente permitir a elaboração desse
desamparo: as religiões, a arte, o trabalho, o amor, a psicoterapia, etc.
A trágica condição humana
Depois desse percurso fica mais claro como a fórmula da auto-ajuda pode
ser tão eficaz e verdadeira, uma vez que o segredo está em tocar a essência
negativa da trágica condição existencial humana. Tentei argumentar que o
discurso da auto-ajuda é uma espécie de reverso da lógica constitutiva do
espaço psicológico da modernidade e, portanto, é um discurso legítimo e
pertinente a nossa situação contemporânea, embora se preste muito mais ao
alento da angústia do desamparo existencial e a saídas conformistas e passivas
para o sofrimento. Portanto, nós, pós-modernos, temos muito a aprender com a
crítica e interpretação dos discursos de auto-ajuda, na medida em que são
sintomáticos de nossa subjetivação contemporânea. Contudo, o que faz desse
gênero literário uma espécie de tentação é o seu apelo ao mais essencial de
nossa condição humana, que é nossa capacidade simbólica universal.
Talvez por conta disso Lacan tenha remetido sua discussão sobre o símbolo
às nossas origens culturais: a civilização grega. Ele foi buscar nos diálogos
de Platão uma ilustração de nosso desejo. No seu Seminário 8, sobre a transferência, Lacan analisa O banquete, de Platão, buscando elucidar
a origem do vínculo de desejo humano. Trata-se de um diálogo sobre o amor, onde
Sócrates é cortejado por diferentes personagens masculinos. Toda a questão gira
em torno do que é a essência do amor e ela converge para a ilustração de que o
amor de Sócrates é como um ágalma.
Ágalma é um objeto na forma de ornamento ou enfeite que guarda uma jóia ou
presente. Era utilizado como oferenda aos deuses na Grécia Antiga e seu
significado remete a essa distância que se coloca entre o verdadeiro objeto e
aquilo que se apresenta. Na trama do
diálogo de Platão, a interpretação Lacan acaba construindo é a de que esses
objetos representam aquilo que guarda um segredo que produz submissão às ordens
daquele que os possui, de forma tal que o véu que esconde a essência é o
verdadeiro encanto, sendo o objeto derradeiro descartável. Uma boa metáfora
para a noção de ágalma é compará-lo àquelas bonequinhas artesanais da cultura
russa, as matrioskas: uma série de
bonecas que se encaixam umas dentro das outras. Pois bem, o efeito do ágalma é o
que abrir essas bonecas proporciona, são camadas e camadas até se encontrar o nada.
Não há objeto último, a casca é a própria coisa!
Portanto, esse é o segredo da real e trágica condição humana que se
expressa, de forma massificada, pausterizada e comercializada na literatura de
auto-ajuda. Em tempo: o referido "Pêndulo" foi desenvolvido pelo
físico auto-didata francês "Leon Foucault" na metade do século XIX e
constituiu o primeiro experimento científico a comprovar a hipótese de que a
terra gira em torno do seu eixo. Linda metáfora para ilustrar nosso
constitutivo devir simbólico, não?
Bibliografia
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