domingo, 3 de março de 2013

A Diversidade da Psicologia (Matéria Revista Psicologia - Editora Mythos)


A Diversidade que Nos Une * 

A pluralidade de perspectivas dentro da psicologia não é um acidente, mas o reflexo da própria natureza dos saberes e práticas psicológicas. Compreender essa diversidade é fundamental para a formação e atuação do profissional da área.

Por Érico Bruno Viana Campos

Tributária em sua origem de dois projetos substancialmente opostos – enquanto ciência natural e enquanto ciência social –, a psicologia como campo de saberes e práticas se constituiu e se desenvolveu caracteristicamente a partir da pluralidade de perspectivas, muitas vezes inconciliáveis. Aos olhos do senso comum, a multiplicidade de abordagens científicas costuma sugerir imaturidade, falta de rigor ou mesmo a falsidade do seu conhecimento e de seus métodos. Mas o campo da psicologia revela justamente o limite desse tipo de olhar, mostrando que os fenômenos humanos são de outra ordem de complexidade, em que a diferença (e não a identidade) é a tônica.

Duas versões da história
A psicologia é um campo de saber relativamente recente. É fruto derradeiro do movimento de constituição das ciências humanas e sociais ao longo do século XIX na cultura ocidental moderna, trazendo a marca das contradições e da crise dessa concepção de homem.
Em uma perspectiva mais tradicional da história da psicologia, que ainda é base para o senso comum, se caracteriza a psicologia (e também a psiquiatria) como um triunfo iluminista e científico sobre as trevas das crendices populares e especulações filosóficas. Seria algo como a aurora de um novo tempo em que a aplicação rigorosa do método científico garantiria o conhecimento da verdade e indicaria estratégias e técnicas de intervenção sobre os fenômenos psíquicos e relacionais humanos. Nessa perspectiva positivista e progressista ingênua, a diversidade do campo psicológico seria um acidente de percurso, uma anomalia temporária que tenderia a ser eliminada na medida em que o crivo da aplicação do método científico pudesse constituir uma teoria universal e unificada dos fenômenos psicológicos.
Contudo, essa versão da história não condiz com os fatos. Desde seu nascimento, o campo psicológico é marcado por iniciativas contraditórias e opositivas. Assim, os projetos de psicologia enquanto ciência natural - os estudos sobre senso-percepção, memória e aprendizagem que marcam o início da psicologia moderna – foram simultaneamente acompanhados de movimentos de contestação desses projetos e instauração de outras perspectivas de psicologia não alinhadas com essa concepção de ciência objetiva e natural. Portanto, o início da psicologia traz não só os estudos experimentais e as avaliações psicológicas - os famosos testes psicológicos - mas também estudos que priorizam outra abordagem do fenômeno psicológico; uma concepção em que este é fundamentalmente de natureza subjetiva e da ordem da significação e da cultura, ou seja, os fenômenos psicológicos são fundamentalmente simbólicos e históricos, não podendo ser objetivados e explicados, mas sim interpretados e compreendidos.
Nada mais paradigmático dessa contradição intrínseca do que a posição daquele que é considerado o primeiro psicólogo – Wilhelm Wundt. Formado na tradição experimental da fisiologia, ele foi responsável pela montagem do primeiro laboratório de psicologia experimental na universidade de Leipzig, em 1879. Mas o que pouca gente lembra é que além dessa abordagem experimental dos fenômenos elementares da consciência, que formará a base da primeira escola da psicologia (o estruturalismo), o autor também preconizava que os fenômenos psicológicos complexos – interações sociais, ideais culturais, etc. – deveriam ser abordados por meio de um método histórico-compreensivo mais próprio das ciências humanas, que ele chamou de “Psicologia dos Povos”.
Bem, mas essa discussão que incide no campo da psicologia nascente é clássica na origem de todas as ciências humanas. De qualquer forma, podemos reconhecer que o campo psicológico surgiu marcado por uma cisão clara: de um lado os projetos de ciência natural e do outro os de ciência humana. Essa cisão nos acompanha até hoje e um aspecto ilustrativo disso é  a eterna discussão sobre se os cursos de psicologia devem ser classificados na área de ciências naturais ou na humanas. Essa contradição foi muito bem capturada por um historiador brasileiro da psicologia, Hilton Japiassu, ao afirmar que a psicologia é marcada por um paradoxo, pois se ela se esforça demais para ser ciência, ela perde seu objeto e se ela tenta resguardar em demasia a singularidade de seu objeto, ela deixa de ser ciência.
Entretanto isso não é tudo, pois podemos ficar com a impressão que a psicologia teria apenas dois modelos de ciência a seguir. Na verdade, o que se entende mais claramente hoje é que a psicologia é expressão dessa própria crise da subjetividade. Por isso os autores que seguem essa perspectiva mais crítica da história da psicologia entendem que o espaço de saberes e práticas psicológicas é um espaço de dispersão sem perspectiva de unificação, ou seja, uma constelação ou arquipélago de modelos teórico-metodológicos e de configurações práticas que não são passíveis de solução, pois guardam contradições entre si. São contraditórios porque defendem posições completamente diferentes com relação ao que é o fenômeno psicológico humano e, por conseguinte, ao que devemos priorizar como ideal na construção do que é o ser humano. Isso faz sentido porque cada vez mais os filósofos e epistemólogos da ciência estão convencidos que o objeto do conhecimento não é objetivo e concreto, mas construído socialmente. Portanto, o homem, a natureza e o conhecimento não estão dados de antemão; eles não existem por si mesmos, são construções sócio-culturais.
Isso quer dizer que em uma perspectiva mais recente sobre a história da psicologia, não há mais a ilusão essencialista sobre o fenômeno psicológico, ou seja, que ele exista naturalmente, como uma coisa independente, com leis universais e intemporais. Por isso, aquela primeira visão da história da psicologia é ilusória e parcial. Dependendo da posição que ocupam no campo das teorias e práticas, os críticos poderão chamá-la de ingênua ou mesmo de ideológica ou perversa.
A partir disso, seria mais correto falar de “psicologias”, no plural, ou ainda de um campo ou espaço psicológico, onde reinam diferentes teorias e práticas que tem um contexto comum sócio-cultural e histórico comum. Isso quer dizer que todos eles, por mais diferentes que sejam em termos metodológicos, epistemológicos e mesmo éticos, se configuram a partir de um mesmo conjunto de circunstâncias, para dar conta, de formas diferentes, de certa problemática ou questão que se circunscreve no final do século XIX. Mas que problemática é esta?

Um contexto comum
A problemática é a seguinte: os diferentes projetos de psicologia surgem como uma forma de responder à crise da subjetividade moderna. Todos eles são fruto da crise da concepção propriamente moderna de homem, aquela que afirma que o homem é sujeito de sua história; dotado de razão, vontade e liberdade; soberano de seu corpo e de sua individualidade; cujo domínio mais significativo é sua intimidade privada de emoções e pensamentos. Pode parecer óbvio para o leitor tudo isto, mas só porque ainda nos vemos assim a ponto de não colocar esses pressupostos culturais em questão. Mas o fato é que a demanda por uma ciência psicológica só pode surgir quando começaram a aparecer as primeiras fraturas nessa concepção de uma vontade e consciência soberanas como fundamento racional do homem. Só quando a ideologia iluminista e as utopias sociais modernas (a revolução burguesa em suas facetas econômica e política, ou seja, a constituição dos estados nacionais, a revolução industrial e as revoluções democráticas) se mostraram ilusórias, é que surge a demanda por um saber propriamente psicológico. Portanto, as ciências psicológicas surgiram como uma tentativa de desenvolver um conhecimento a respeito do sujeito moderno que pudesse intervir sobre a crise dessa concepção de subjetividade e de individualidade. Utilizaram para isso as ferramentas metodológicas e epistemológicas de uma grande instituição cultural que é especificamente moderna: a ciência. Então, diferentes psicologias surgem para tentar dar conta da crise do humano, tentando restaurar e instituir certa concepção de homem por meio de seus paradigmas teóricos e técnicos.
É assim que surgem os projetos de psicologia como ciência natural e como ciência humana, marcados por grandes polaridades ideológicas próprias do contexto sócio-cultural da modernidade: o liberalismo, o individualismo, o romantismo, os controles disciplinares, etc. Esse é, inclusive, outro ponto que merece destaque. O contexto sócio-histórico de crise da subjetividade moderna foi marcado por algumas ideias a respeito do homem que se configuraram ao longo dos grandes movimentos culturais que marcaram a civilização ocidental entre os séculos XV e XIX: o renascimento, o iluminismo e o romantismo, além das várias facetas dos chamados regimes disciplinares, tais como o utilitarismo, a tecnocracia, a razão instrumental, etc. Esses movimentos marcaram posições acerca do que deveria ser valorizado e promovido no ser humano como sua característica distintiva, configurando propriamente um conjunto de éticas que passaram a fundamentar os projetos das psicologias nascentes. Isso quer dizer que além de uma vinculação com um projeto de ciência e de conhecimento, as psicologias também são marcadas por diferentes concepções éticas sobre o que é a subjetividade humana.

Portanto, a diversidade das psicologias não se refere somente ao âmbito do conhecimento, mas também aos interesses éticos e políticos que estão atrelados a esse conhecimento. Essa perspectiva está mais próxima das discussões contemporâneas na filosofia da ciência que reconhecem que as teorias científicas não são neutras, como ainda se acredita no senso comum, pois fomentam e justificam certas concepções sobre o que é o humano e, portanto, refletem sobre as próprias práticas sociais. Isso faz com que a questão da verdade não seja suficiente para uma discussão sobre o valor das teorias e práticas psicológicas. A discussão precisa se dar também no âmbito de que posições éticas e políticas essas teorias sustentam. Nesse sentido, a esperança de uma unificação de teorias e práticas ou, pelo menos, de uma orientação comum do campo psicológico se desfaz completamente.
Essa tese foi claramente exposta, trabalhada e divulgada por um dos maiores autores de história da psicologia no Brasil, Luis Cláudio Figueiredo, e vem no esteio da historiografia crítica contemporânea, que tem influências pós-estruturalistas e marxistas. Não vem ao caso entrar em detalhes, mas é preciso reconhecer que autores como ele mudaram a forma de se pensar a história da psicologia no Brasil a partir do final dos anos 1980, descolando-se de vez daquela tradição norte-americana ultrapassada que costuma entender que a Psicologia Moderna é sinônimo dos projetos de psicologia científica.
Isso tudo quer dizer que hoje se entende mais claramente que a "psicologia" não foi fruto de um progresso inevitável da ciência moderna, mas ela é um campo constituído ao longo de um processo sócio-cultural e histórico bastante singular. Nesse sentido, o psicológico, quer seja como experiência subjetiva, quer seja como campo de conhecimento científico, foi uma invenção moderna. Invenção esta, por sua vez, que configura um espaço de teorias e práticas completamente heterogêneo. Tão heterogêneo que não contempla somente o que se convencionou chamar de "Psicologia(s)", mas também outras teorias e práticas que são mais ou menos reconhecidas como campos de conhecimento, práticas e mesmo profissões. Assim, quando falamos que o espaço psicológico emerge na crise da modernidade, queremos dizer que nele emergem não só as diferentes psicologias, mas também a psiquiatria e a psicanálise, sem falar em outras práticas e doutrinas menos reconhecidas como, por exemplo, muitas das chamadas "terapias alternativas" e das "auto-ajudas".
No limite, portanto, podemos dizer que a "Psicologia" não existe, que não é uma identidade unitária. Ela é antes um espaço contraditório que se circunscreve nas fronteiras entre diversas posições quanto ao fenômeno humano e também na interface com outros campos de saber.

Consequências para a Formação
            Ao longo desse texto pudemos apresentar as questões concernentes à história da psicologia que fazem desse campo um espaço de dispersão de conhecimentos e de posições éticas sem perspectivas de unificação. Conhecer essa história é fundamental para a formação do psicólogo não só porque permite ao profissional conhecer a diversidade desse campo, mas tirar dela uma grande lição: o reconhecimento de que nenhum saber ou prática psicológica pode se asseverar uma posição de verdade absoluta, ou seja, que dê conta de toda a complexidade dos fenômenos psicológicos. Mais do que isso, precisa reconhecer que toda teoria ganha sua identidade a partir da exclusão de certas dimensões do campo psicológico e que há sempre algo da ordem de um inconsciente no horizonte de todas as psicologias.
            Isso quer dizer que o profissional de psicologia precisa lidar com a condição permanentemente em crise de seu saber e de seus instrumentos. Essa não é uma tarefa fácil, trazendo muita angústia ao profissional em formação por não ter garantias de certeza em relação a suas escolhas teóricas e técnicas. Há duas formas clássicas de lidar com essa angústia, que levam a duas posturas profissionais distintas no campo da psicologia. A primeira é a postura dogmática, em que o profissional se aferra de forma doutrinária aos referenciais de sua escolha, sem se preocupar com qualquer outro referencial teórico ou prático. Na verdade, muitas vezes essa postura leva a uma hostilidade e rivalidade com outros referenciais, como se apenas uma abordagem pudesse ser válida ou verdadeira. A segunda postura é a eclética, em que o profissional adota uma posição contrária, sem se identificar com nenhuma abordagem específica, utilizando de vários referenciais distintos a depender de sua intuição pessoal, da demanda do cliente ou da conveniência da situação. Trata-se de uma posição fundamentalmente pragmática, ou seja, baseada na concepção de que é válido o que funciona. Se a primeira postura se identifica com uma verdade única, a segunda abre mão de qualquer verdade ou rigor. Ambas são estratégias diferentes de lidar com a angústia de ter de responder individualmente aos impasses e incertezas do campo psicológico. Uma postura mais madura é aquela que assume a complexidade do campo e toma uma posição propriamente crítica, ou seja, que considera legitimamente as contradições e limites das teorias e práticas, tomando para si a tarefa de construir uma resposta singular às demandas da situação. Nessa postura, o profissional tem uma maior responsabilidade, pois seus instrumentos e referenciais precisam passar por uma apropriação pessoal para que se possa de fato criar estratégias de pensamento e intervenção.
Como se pode perceber, uma postura crítica e fruto de uma posição ética fundamental: o reconhecimento que as verdades não estão dadas e acabadas, mas que precisam ser construídas, conquistadas e defendidas com responsabilidade. Portanto, a formação do psicólogo exige que o profissional seja, sobretudo, um sujeito “responsável”. Mas a responsabilidade aqui não é apenas a obediência ou referência a um código de conduta profissional ou a preceitos morais sociais, mas ao próprio fundamento ético de todo ato humano.
Na mitologia grega, a história do centauro Quíron é uma ilustração das habilidades de cuidado e de cura. Sua capacidade terapêutica estava intimamente relacionada ao seu desamparo. Este se configurava pelo seu abandono de origem e pelo fato de ele próprio ser portador de um ferimento incurável causado por uma flecha envenenada. Era essa ferida aberta, produzindo um sofrimento constante, que lhe dava tão especial sensibilidade e conhecimento ao lidar com a dor do outro. Ou seja, para curar é preciso entrar em contato com sua própria dor.
A história da psicologia nos ensina que o campo psicológico é um lugar de certezas parciais, tal como a própria condição de nossa subjetividade. Somente com o reconhecimento da fragilidade de nossos instrumentos e da diversidade de nossos olhares é que podemos responder autenticamente à delicada tarefa de cuidar do sofrimento humano.

Bibliografia
FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Ed. rev. amp. São Paulo: Educ; Petrópolis, Vozes, 1996.
FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: uma (nova) introdução. 2. ed. São Paulo: EDUC, 2003.
JACÓ-VILELA, Ana Maria; FERREIRA, Arthur Arruda Leal; PORTUGAL, Francisco Teixeira. História da psicologia: rumos e percursos. 2. ed. rev. amp. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2007.
JAPIASSU, H. Introdução à epistemologia da psicologia. 5. ed. rev. amp. São Paulo: Letras e Letras, 1995.
SANTI, P. L. R. A construção do eu na Modernidade: uma apresentação didática. 2. ed. Ribeirão Preto: Holos Editora, 1998.
_____________________________________
* Matéria publicada na Revista Psicologia da Editora Mythos, n. 3. O autor é Psicólogo, mestre e doutor em psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP. Professor assistente doutor do departamento de psicologia da UNESP Bauru. Site pessoal: https://sites.google.com/site/ebcamposonline/. Blog: http://interpretacoesdacultura.blogspot.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário