quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Flash da Crise Estudantil da USP

Este blog anda um pouco parado... Dr. Silvério não tem tido tempo de aparecer no meio de muitos afazeres do ego comum. Fiquei completamente por fora dos acontecimentos em torno da crise estudantil da USP, fruto da distância e do marasmo da vida administrada de todos nós. Mas eis que deparei com a Transcrição da aula pública do Prof. Christian Dunker, do IPUSP, dada durante a ocupação do Vale do Anhangabau pelos estudantes. Um texto maravilhoso - crítico, instigante e convocativo - que nos faz pensar sobre os movimentos de ocupação do espaço urbano e sobre a concepção de justiça e de violência na vida pós-moderna. Além de tudo é um exemplo do que mais faz falta hoje em dia: engajamento. Grato ao Christian e a tantos outros que colaboraram e estão fazendo esse movimento. Obrigado por me acordarem do "sono dogmático"!

Segue o link:
http://15osp.org/2011/11/14/transcricao-da-aula-publica-do-prof-christian-dunker/#more-1169

terça-feira, 12 de abril de 2011

Atualizações e links sobre Zizek

Complementando o post anterior, seguem alguns links interessantes sobre o Slavoj Zizek

Blog Zizek: apresenta boa parte da obra do autor e com vários links interessantes

http://slavoj-zizek.blogspot.com/

Incluindo o link do documentário Zizek (2005), disponível para download em:

 http://www.megaupload.com/?d=3UO6VHXV

Quanto ao famoso guia perverso do cinema, tem em partes no You Tube e também disponível para download em:

http://www.baixargratis.tv/filmes/the-pervert-s-guide-to-cinema.html

Só é chato porque está em duas partes.

Mas o mais interessante é que há fortes indícios de que Zizek virá ao Brasil para o seguinte evento, mas não encontrei maiores informações, como, por exemplo, onde e quanto será!

Maio 20 e 21 - Seminário: Revoluções - Uma política do sensível

http://revolucoes.org.br/v1/seminario/slavoj-zizek

Quem souber de maiores informações, favor compartilhar!

Bem, por enquanto é isso. Fico devendo o texto sobre o Filme...

Encarnação da "Mãe Suficientemente Boa"

Os psicanalistas encontrarão aqui uma ótima tirada com a noção de apresentação de objeto de Winnicott. Divirtam-se!

Comercial Volkswagen Darth Vader

domingo, 10 de abril de 2011

Um Psicanalista sem Papas na Língua

Filósofo e psicanalista sloveno é o representante de uma espécie em extinção na contemporaneidade: o livre-pensador revolucionário e polêmico de esquerda.

Slavoj Zizek (1949) é um filósofo e psicanalista da Slovênia (antiga província da Iugoslávia comunista) que tem aparecido cada vez mais no meio acadêmico nacional, com uma série de livros publicados no Brasil nesta última década. Crítico da cultura e sociedade contemporânea, apoia-se em Lacan e Marx para pensar temas como a ideologia, o real e a subjetividade.

É um autor bastante produtivo, que escreve sobre os mais variados temas da cultura e sociedade contemporânea, tentando articular uma visão sobre a chamada subjetividade pós-moderna que mantenha uma dimensão de engajamento, radicalidade e emancipação, ideários esquerdistas que andavam completamente fora de moda em função de seu apelo carateristicamente modernista. Penso que é possível abordar o pensamento de Zizek por vários caminhos, quer seja a partir de seu engajamento político, quer seja pela construção de um discurso filosófico da subjetividade, quer seja pelo olhar psicanalítico para essa mesma subjetividade contemporânea.

Costuma-se dizer que o trabalho de Zizek é marcado por uma tentativa de articulação entre a Psicanálise e o Marxismo, por meio do referencial Lacaniano. De fato, Zizek fez formação em psicanálise na França e é um dos principais expoentes do grupo de Jacques Allain-Miller e defensores do último Lacan, o da clínica do Real. Contudo, embora Lacan seja uma referência central em seu pensamento, o Marxismo não me parece tão central, ou, pelo menos, tão puro. Penso que o que fica do marxismo em Zizek é sua dimensão política, pois ele se distancia claramente dos herdeiros contemporâneos do marxismo na filosofia européia, que são os autores da psicologia crítica da sociedade. Ora, uma das contribuições reconhecidamente mais importantes e centrais do pensamento de Zizek é sua releitura da ideologia. Como se sabe, a concepção marxista clássica de ideologia é a de uma ilusão imaginária produzida pelas classes dominantes para ocultar o movimento histórico de constituição material e dialética da sociedade. Nesse sentido, o marxismo é herdeiro de uma visão moderna de realidade como positividade, ou seja, parte da crença que sob o véu de ilusões ideológicas jaz a realidade das condições materiais históricas. Daí a noção de revolução como restituição da marcha original da história. Afinal não é esse o sentido maior da dialética do esclarecimento dos frankfurtianos: recolocar a história no trilho da emancipação humana? Pois bem, o marxismo de Zizek não é nada positivo e essencialista. Se quisermos, podemos dizer que Zizek reinscreve a problemática marxista no contexto da pós-modernidade, onde todas as ilusões essencialistas são definitivamente desintegradas.

 É aí que entra a contribuição de Lacan, por meio da concepção do Real. Como se sabe, o último Lacan é aquele da primazia do registro do Real sobre os registros do Simbólico e do Imaginário, onde o objeto a ganha sua conotação definitiva de "a Coisa (Das Ding)" ou objeto-fonte da pulsão. Assim, no lugar de um sujeito do inconsciente calcado na verdade do desejo, sobressai o momento de constituição das tramas simbólico-imaginárias como resposta ao encontro com o Real. É a dimensão traumática e negativa da pulsão de morte como momento zero da subjetivação que é ressaltada com a noção de um gozo para além de qualquer possibilidade de inscrição e, portanto, fonte contínua de todo movimento de subjetivação. É essa concepção do Real Lacaniano que é o fundamento para Zizek fazer uma leitura da subjetividade contemporânea que esteja assentada em uma negatividade originária. Nisso ele se alia ao grande movimento da filosofia contemporânea em direção a uma desconstrução da subjetividade moderna, que vai da ontologia hermenêutica Heidegger aos pós-estruturalistas e desconstrucionistas franceses. Mas sua contribuição específica está em afirmar que a ideologia é uma construção simbólico-imaginária que tenta dar conta do encontro com a dimensão traumática e impossível do Real e, que, portanto, se assenta em uma resposta diante do negativo e não uma ocultação de uma suposta realidade postivia exterior à subjetividade.

Bem, a pergunta diante dessa tese fundamental é: o que sobra de marxismo nessa concepção de sujeito? Parece-me que não sobra muito em termos ontológicos. O mesmo pode-se dizer da psicanálise: estamos completamente fora de uma psicanálise que se assente em uma ontologia do sujeito psicológico. Portanto, Zizek é claramente um lacaniano e nos ajuda a entender a radicalidade das implicações filosóficas da posição de Lacan. Mas assim, como o pensamento de Zizek não transita mais no nível de Marx, também não transita no nível de Freud.  É, de fato, uma concepção radical e contemporânea de subjetividade.

Não me interessa tanto entrar pelos meandros da contribuição filosófica de Zizek no panorama dos discursos sobre a pós-modernidade, o que me chamou a atenção foi seu aporte psicanalítico para pensar a questão da subjetividade e, principalmente, a aplicação desse olhar e dessa escuta sobre os fenômenos sociais e culturais. Pois aí é que entra em cena o Zizek propriamente livre-pensador. Além das implicações políticas que sua desconstrução dos discursos ideológicos promove, ele chama a atenção para a estrutura paradoxal e absurda das produções de sentido humanas, ou seja, aponta propriamente para a dimensão inconsciente das formações culturais. Nisso, mais especificamente, ele é um ótimo psicanalista dos fenômenos sociais e faz isso com um estilo retórico bastante característico e marcante. É também  nesse nível que ele é mais "pop"! Trata-se de mais uma ilustração daquele princípio clássico de que as instituições sofrem do mesmo sintoma que pretendem erradicar. Pois bem, Zizek em sua radicalidade crítica é também uma ilustração do que seria o livre-pensador contemporâneo: transita com maestria pela cultura pop e busca em vinhetas do cotidiano da cultura, em especial nas narrativas do cinema, explicitar o campo de problemáticas da subjetividade. Nisso, é claro, ele faz o que é uma característica marcante dos nossos tempor: torna "palatável" e "assimilável" com um estilo jocoso e frenético, os enigmáticos conceitos da filosofia e da psicanálise. Assim, ironicamente, ele acaba sendo revolucionário em relação ao discurso acadêmico, principalmente na psicanálise lacaniana, pois deixa de encarnar o tal do sujeito suposto saber que é o duplo de toda instituição lacaniana...

É verdade! Uma das coisas que sempre me impediu de me identificar com o discurso lacaniano é que ele também sofre sintomaticamente do mal que procura erradicar: os lacanianos encarnam o suposto saber como ninguém, abrindo mão de encarnar o ideal para o reles pequeno outro, mas literalmente pagando pau para o regime discursivo do grande Outro. Sim, porque para mim essa é a principal razão do execrado "lacanês": é o código secreto que compartilham aqueles que tem acesso à "Verdade". É claro que com isso estou criticando o estereótipo cultural do lacaniano, cujo representante típico é o pobre estudante em formação que precisa criar uma identidade diante do traumático da experiência do inconsciente na clínica e na teoria... Mas, infelizmente, é essa a marca que fica na cultura popularizada e de massas, o que permite a aproximação do movimento lacaniano com uma instituição religiosa. Enfim, sempre me irritou bastante essa reverência hermética dos lacanianos e Zizek é um pensador que não precisa pagar pau para os pais simbólicos da psicanálise e da filosofia. Isso é que faz dele um pensador maduro e original e penso que essa seja a maior contribuição que ele possa dar para a velha acadêmia sempre ocupada em reverenciar mais do mesmo.

É claro que a irreverência, humor e originalidade de Zizek também cativam. Penso que isso tenha possibilitado que ele tenha caído nas malhas da cultura pop. Pelo menos é alguém que usa do discurso da cultura de massas para proporcionar uma reflexividade, o que é, por si só, fantástico! Afinal a sociedade da informação possibilita que qualquer um se intitule um autor, certo? Assim, os ensaios de Zizek são muito bem-vindos para trazer vida nova à crítica da cultura e à reflexão sobre a subjetividade contemporânea. É também um exemplo de que se pode ser "popular" com qualidade, algo que no Brasil, em particular, sempre foi tabu (o que, por sinal, é um ótimo exemplo da condição paradoxal do nosso elitismo...).

O único revés que vejo em Zizek é que ele não tem "papas na língua" em outro sentido: escreve compulsivamente! Nisso ele me irrita tanto quanto um outro autor que está na crista da onda das discussões sobre a pós-modernidade e que também é um ótimo representante do que melhor pôde se produzir a partir do "outro lado" do mundo bipolar que marcou a geopolítica da segunda metade do século XX: Zygmunt Bauman. Claro que eles têm justificativas pessoais para reescrever o mesmo texto tantas vezes, mas talvez isso também seja uma inevitabilidade desses tempos contemporâneos de produção desenfreada. De qualquer forma, por mais que admire a contemporaneidade, nesse ponto sou mais modesto...

Mas vamos lá, por onde começar a conhecer Zizek? Acho que os documentários são um bom começo, em especial o ótimo "Guia do Perverso para o Cinema" (2006), do qual estou devendo um post neste blog (Quem sabe o próximo...). Dos livros, achei muito interessante a leitura de seu livro recente sobre Lacan. Foi o livro que conseguiu finalmente me capturar para o pensamento do autor. Acho que pode ser o mais interessante para os estudantes de psicologia e de psicanálise, porque introduz a partir de temáticas mais próximas do universo conceitual e teórico desse público, em vez da discussão mais ampla sobre sociedade, política e filosofia. Minha sugestão para os "psi" é começar pelo singelo e aparentemente didático Como Ler Lacan (Zahar, 2009) e, se quiserem ter uma visão mais ampla do pensamento do autor, partir para a coletânea de entrevistas Arriscar o Impossível: conversas com Zizek (Martins, 2006). Vou me ater a falar um pouco do primeiro livro.


Em tempo: o projeto editorial desses dois livros diz tudo, não? Mais evocador do ideário comunista impossível! Deve ter sido pura jogada de marketing das editoras, mostrando como na contemporaneidade até a revolução virou mercadoria. Só faltou a foto clássica do Che Guevara... Enfim, são os absurdos do real!

O título do primeiro livro é já uma provocação. Espera-se uma apresentação "didática" do pensamento lacaniano, mas o que se vê é uma coletânea de ensaios sobre a cultura que ilustram conceitos fundamentais do pensamento lacaniano, em especial as concepções de sujeito, fantasia e real. Mas embora seja bastante competente em ilustrar e desenvolver o sentido de excertos herméticos e clássicos da obra de Lacan por meio de recortes da cultura cotidiana, como o discurso do terrorismo, a literatura de Dostoiévski, e filmes como Alien, Casablanca e De Olhos Bem Fechados, não são propriamente textos para não-iniciados. O Que Zizek faz é "Ler a Cultura com Lacan", mostrando como o referencial lacaniano é útil para ler a realidade discursiva das ideologias que a cultura produz e reproduz. Também faz aí sua tomada de posição de que a psicanálise é um instrumento de leitura da sociedade, ou melhor, de que a psicanálise é um método de escuta da formações discursivas que compõem a realidade e a subjetividade. Como um bom pós-moderno, Zizek nos ensina, a partir de Lacan, que a personalização do sujeito e a distinção entre psiquismo individual e coletividade social são ilusões modernas.

Assim, "Como ler Lacan" não é um livro para iniciantes, embora possamos aprender com Lacan e com Zizek que também não há como se iniciar em uma ideologia a partir "de fora", mas que só se pode "ler" um autor percorrendo o mesmo caminho discursivo, ou seja, só se pode entender um pensamento a partir "de dentro", sendo habitado e deixando-se habitar por ele. Então, também se entende que não há como se "introduzir" alguém a um regime discursivo sem traumatismos, sem a violência da diferença. Nisso me parece que Zizek é radicalmente lacaniano. Este seu livro, inclusive, versa sobre conceitos-chave fundamentais da obra de Lacan que permitem uma inserção na problemática da subjetividade contemporânea. Partindo de uma elucidação da linguagem como ato performático e, portanto, da marca fundamental da virada lingüístico-pragmática da filosofia contemporânea, Zizek situa o pensamento lacaniano na ruptura com a tradição moderna de sujeito. Em seguida, mostra toda a complexidade da noção de sujeito na psicanálise lacaniana, passando para a relação entre ideologia e fantasia, reiterando a sua posição de que a fantasia é uma resposta à experiência da negatividade do Real. Por fim, apresenta formidavelmente a concepção de Real, que é o ponto de partida de uma nova ontologia baseada na psicanálise lacaniana. Tendo feito esse percurso de apresentação da concepção de sujeito em Lacan, arremata o livro com dois ensaios sobre as derivações dessa concepção para a vida social, com uma crítica da política e da religião.

O que me chama a atenção em termos de apresentação dos conceitos lacanianos neste livro é justamente a clareza da ilustração da radicalidade do conceito de sujeito. Como bons modernos, tendemos a ler Lacan a partir de um ideário moderno e humanista, que resgata a autonomia e a liberdade perdidas da consciência em um suposto sujeito do inconsciente que carregaria a essência da verdade do desejo. Mas a radicalidade e originalidade de Lacan está justamente na ruptura com essa tese essencialista e em uma afirmação da diferença e da negatividade como atributos da subjetividade. Nesse sentido, é extremamente necessário resgatar como a subjetividade na psicanálise é, sobretudo, passiva e alienada no Outro. O ensaio do segundo capítulo é magistral para apresentar essa dimensão passiva e, de quebra, nos mostra o quanto essa dimensão é fundamental para entender a subjetividade contemporânea, na qual o gozo passivo é cada vez mais pregnante. A idéia de uma catarse interpassiva do sujeito contemporâneo me parece extremamente rica e original para a discussão sobre a constituição da subjetividade na relação com a alteridade. Para Zizek, essa alteridade absoluta é, nada menos, do que o Real, o que acentua toda a origem traumática da constituição intersubjetiva do sujeito. Isso tem implicações filosóficas intensas, e se articula com posições éticas diversas, desde a posição existencial de Lévinas até as ontologias da diferença de Derrida e Deleuze.

O interessado em Lacan, por sua vez, encontrará um esclarecimento de conceitos fundamentais e também polissêmicos e confusos no jargão psicanalítico, como as concepções de Real e de gozo. Zizek não só mostra a complexidade desses conceitos, como quando, por exemplo, ilustra que o sadismo superegóico é mais um imperativo de gozo do que uma proibição ao desejo, como também desenvolve e desdobra essa problemática, como quando apresenta a idéia de um rebatimento dos registros da subjetividade uns sobre os outros, criando nuances do Real - o real real, o real simbólico e o real imaginário.

Portanto, como se pode perceber, não se trata de uma mera apresentação introdutória, mas da própria elaboração teórica em curso, o que faz com que a leitura desse livrinho de 150 páginas não seja uma tarefa fácil. Mas o problema é que o Diabo da coisa te seduz e te captura e quando você se dá conta, já embarcou no encadeamento. Isso quer dizer que é daqueles livros que se lê muitas vezes, sempre com uma nova perspectiva e que, portanto, também nunca se acaba. Talvez seja por isso que o próprio Zizek escreva tanto: para dar contorno ao que é impossível...

Vale à pena arriscar!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Baraka: O Sopro da Vida e o Encanto dos Sentidos


Documentário filmado em 24 países dá uma aula sobre o poder dos símbolos na vida humana.


Baraka é uma palavra sufi que significa algo como o sopro ou a pulsação da vida. É um nome bastante adequado para o documentário "experimental" americano de Ron Fricke (1992),  cinematografista que trabalhara em um projeto similar de filme sem narrativa que articulasse diversas imagens da natureza e das diversas culturas humanas, conhecido como trilogia Qatsi. Mais do que um mero filme étnico ou representante de certo "world cinema", Baraka é uma obra de arte sensível que nos captura e nos convida para um distanciamento estético em relação à essência do ser humano.


A característica distintiva deste filme como obra de arte é que se trata de uma colagem  sem qualquer narrativa estruturada. Não há enredo, não há um narrador que medeie a absorção e interpretação das imagens que são apresentadas. Há apenas uma música instrumental incidental de fundo e os sons da vida natural e cultural. No entanto, é justamente esse silenciamento da linguagem falada que provoca o estranhamento característico da experiência estética do filme. Ao calar, o filme liberta uma profusão de sentidos, deixando o espectador à mercê de seus próprios devaneios e interpretações. Tal como o eclipse que aparece com destaque no cartaz do filme, o silêncio põe em suspenso a clareza da linguagem e nos permite tomar distância em relação aquilo que, de tão claro, torna-se invisível: o fato de sermos seres cuja linguagem é o meio universal da experiência.

Curiosamente, a experiência fundamental que Baraka proporciona não é a do "puro" olhar. Por mais impressionante que sejam as imagens do filme, não se trata do lugar comum presente no ditado que afirma que "uma imagem vale mais do que mil palavras". O fato de não termos fala pode nos iludir que estamos apenas observando a realidade, mas o fato é que o silêncio das palavras apenas permite que uma outra linguagem se articule: a semiótica das imagens.

Na história das artes, é conhecido momento inicial de preconceito dos artistas e críticos em relação à fotografia. Um dos maiores detratrores da fotografia como forma de expressão artística foi o poeta e escritor francês Charles Baudelaire. Para ele, assim como para a maioria dos outros, a fotografia constituiria uma mera reprodução da realidade empírica e não uma expressão ou construção de sentido sobre a mesma. Ela seria meramente a fixação de imagens, permitindo uma duplicação e cópia da realidade. Não haveria ali lugar para a invocação de sentido própria da expressão artística e da experiência estética. Ora, o que esses críticos  esqueceram e que posteriormente foi ficando cada vez mais claro é que a técnica fotográfica permitia um distanciamento da imagem por meio de sua reprodução da realidade. Mais ainda, ela permitia um recorte e um testemunho concreto e estático de uma realidade que se apresentava como puro devir temporal. Pois bem, ao recortar a totalidade da realidade e representá-la por uma imagem, a fotografia permite um distanciamento interpretativo que cria sentidos. A foto não é a realidade, mas um parte da realidade representada e que, portanto, é dotada de intencionalidade e de significação. O enquadramento, a luz, e diversas outras características da fotografia nos invocam sentidos que estão para além da afetação natural que esses fenômenos visuais nos provocam. O fato de estar ali, reproduzido, concretizado, encarnado de intencionalidade humana nos faz interrogar sobre o sentido que se esconde por trás da mera imagem.

Esse fenômeno, que já é pregnante na experiência fotográfica, se amplia de forma considerável na experiência cinematográfica. Pode parecer que a experiência visual de um filme seja mais real, porque se desdobra no tempo, porque traz imagens encadeadas "naturalmente" ou porque nos dá a sensação de "imersão". Mas isto também é ilusório. O essencial da arte do cinema está na articulação das diversas imagens na criação de um enredo e de uma narrativa que se sustente em sua própria linguagem.  Como todos sabem, trata-se de uma história contada por meio de imagens. A fotografia, a edição, os diálogos e a trilha sonora compõe uma trama complexa de vários níveis de sentido que, contudo, parecem "reais". No entanto, há um distanciamento entre a poltrona e a imagem na tela,  uma verdadeira certeza ontológica  do caráter imaginário da vivência, que justamente permite e sustenta a ilusão da experiência estética cinematográfica.

Podemos então dizer que a linguagem está encarnada no olhar e que se uma imagem vale mais do que mil palavras é só porque uma imagem pode suscitar mais invocações de sentido do que uma única palavra e também porque a imagem tem um poder a mais de sedução porque concretiza e materializa o sentido dos atos de linguagem.

Por causa de suas características estruturais e de sua temática geral, Baraka  nos convida a pôr em suspenso os sentidos que atravessam e constituem nosso cotidiano, assumindo uma postura de reconhecimento e de contato com a alteridade dos fenômenos humanos que nos rodeiam. Essa atitude ética fundamental é o ponto de partida de toda e qualquer ciência humana, sendo assim a base do olhar do psicólogo, do fenomenológo, do psicanalista e do cientista social. Talvez seja essa a grande lição da Antropologia para o campo das ciências humanas: um olhar que subverte a postura etnocêntrica tradicional, procurando fazer a ponte de sentido entre o diferente e o semelhante, por meio de um duplo movimento interrogação do outro a partir do próprio e do próprio a partir do outro. Portanto, Baraka é por si só um verdadeiro exercício do olhar antropológico que nos lança em busca da resposta sobre a essência do humano.

Falemos agora das significações específicas que o filme suscita. Podemos dizer que a proposta do filme é fazer um mosaico da variedade natural e humana, articulando-as para produzir efeitos de complementaridade e contraste. Penso que qualidade do filme está neste sutil e lento tecer que a narrativa não estruturada e muda nos proporciona. Logo de saída há uma cena fantástica que dá a tônica dessa interpenetração entre vida natural e vida cultural.


A câmera acompanha um grupo de macacos orientais tomando banho em uma fonte de água termal como forma de se protegerem do frio. Um close é dado em um macaco particular, que em seu olhar circunspecto e em total imobilidade, lembra um ancião humano. A experiência é clara: você sente fazer "contato" com o olhar humano do macaco em uma atividade sobre o corpo tão caracteristicamente cultural que é tomar banho. Você sente o "deleite" humano do ócio daquele animal.

O que o filme não explicita para o espectador é que essa experiência de "banho de água quente" é um dos poucos registros catalogados de criação de cultura entre os animais. Para muitos biólogos, o que faz uma conduta ser cultural é que ela é desenvolvida por meio de aprendizagem coletiva pelos indivíduos de um grupo e é perpetuada no grupo por meio do ensino. É uma adaptação não instintiva e mantida por meio de aprendizagem no grupo de geração em geração. Pois bem, nesse sentido, essa prática de banho foi uma conduta aprendida por certos grupos de macacos orientais, que normalmente evitavam se molhar e lugares perigosos como fontes de águas termais.

É claro que há uma ampla discussão sobre se isso é suficiente para definir a cultura humana, como, por exemplo, se não falta aí justamente o aparato simbólico que é característico da formações culturais humanas. Nesse sentido, as pessoas podem argumentar que ver um macaco fazer uso de linguagem simbólica seria mais significativo de uma possibilidade de "cultura" animal (o que também já foi amplamente documentado, por sinal). Mas não importa, pois não se trata de uma discussão científico-acadêmica, mas sim da provocação de uma experiência de sentido e não podemos negar que essa cena te impele a habitar o lugar mítico da cesura entre natureza e cultura.

Pois é justamente do limiar entre natureza e cultura que parte o filme, percorrendo em seguida as diferentes formas pelas quais os humanos se alienam e se submetem aos regimes simbólicos mais estranhos. Dos fetiches religiosos como cadeados, pedras e tábuas até as marcas de pintura de ambientes e corpos, tudo excreta sentido. Um segundo momento marcante é a primeira cena em que efetivamente entra em jogo a fala e a sonoridade do corpo humano na produção de um ritual coletivo. A cena é forte por dois motivos: a extrema coesão e uniformidade do grupo de homens que encena o ritual e o aparente absurdo e despropósito de uma linguagem que ainda está muito colada aos sons do corpo e da natureza. É a experiência de uma verdadeira convulsão humana que mimetiza ou representa o que parecem ser os movimentos da natureza. A totalidade coesa dos homens se divide em dois grupos que passam a alternar momentos de opressão e submissão sobre o outro grupo: um grupo se levanta e grita, o outro deita e se cala. Parece que o ritual tenta dar ordem ao caos do agrupamento humano por meio de uma inspiração nos ritmos da natureza. É como se a partir da natureza se produzissem as linhas de força que articulam a cultura humana. Mas também é um atestado de como o ser humano se submete a essa estrutura de sentido que precede ao indivíduo e o molda.

As ilustrações se seguem, ora mostrando modos de vida mais articulados à natureza, ora mostrando modos de vida em que a cultura ganha uma vida e estrutura próprias, quase independentes.  São as cenas que mostram a vida nas grandes cidades. Ali vemos emergir uma temporalidade nova, um ritmo massificado e uniformizado, cuja metáfora fundamental é o funcionamento de uma máquina. De linhas de produção de cigarros, passando pelo pedestres e pela seriação de pintos em uma granja, até o pulsar constante e ritmado do trânsito nas ruas, vai se construindo a imagem de uma grande e opressora máquina que são as grandes cidades das "civilizações modernas" humanas. São cenas fortes, transbordando a sensação paradoxal de que o auge da coesão social seja também o auge do anonimato, da indiferença e da falta de sentido na vida. Mais ainda, a indicação de que a sociedade acaba se constituindo em um novo organismo vivo, no qual não passamos de células acéfalas e desumanizadas.

Por meio desse percurso, se fecha o círculo que saiu da natureza para a cultura e que da cultura volta à natureza. O humano é aquilo que ficou no caminho, ou melhor, a condição humana é essa própria travessia. Por conta disso, entendo que o grande fio condutor dessa narrativa sejam as vicissitudes da temporalidade no que tem de condição essencial do ser humano. Sim, pois não se enganem: os ritmos da natureza são apenas o suporte para a temporalidade humana. A vivência de tempo no filme é uma construção humana: do cineasta e do espectador.

Não há algo de reconfortante e tranquilizador em ver a passagem do tempo na natureza, como a noite que cai e avança, ou o sinuoso movimento das nuvens? É quase um alívio constatar essa encarnação do tempo na natureza, pois é uma espécie de atestado de que ele não me pertence; que está ali claro e objetivo diante de mim. O tempo é produto do sentido; é produto desse véu com que a linguagem nos envolve, tal como as nuvens lentamente se apropriam e cobrem o olhar da paisagem em uma das cenas do filme. Isso certamente daria pano para um debate ontológico sobre a natureza humana, em que certamente a fenomenologia existencial teria uma grande contribuição a dar. Mas não cabe desenvolver isso aqui, afinal a força do filme está justamente em conseguir comunicar essa experiência de forma intuitiva.

Entendo, portanto, que Baraka seja mais do que um documentário sobre a diversidade humana ou sobre as belezas da natureza. Também acredito que não seja um filme de bandeira "ecológica" ou "religiosa", que pregue simplesmente a volta ao paraíso perdido do seio da mãe natureza onde reina a harmonia e a bondade. Ele é um filme sobre o encantamento e o estranhamento da trágica condição da travessia humana em que a busca de sentido se configura como nossa única luz. Nesse sentido, é uma obra de arte altamente indicada para qualquer um que deseje se ocupar disso como objeto de estudo e de identidade profissional.






sexta-feira, 4 de março de 2011

Balizas de Leitura em uma Biblioteca Infinita de Signos



Divulgação
Professor de Literatura e Psicanalista francês desenvolve belo ensaio de crítica literária discutindo de forma irônica uma questão pragmática: "Como falar do que não lemos?"

Em meio a tantas publicações que inundam as livrarias e as telas de computador nesses tempos hiper-modernos em que informação e conteúdo são tudo, não há como não se sentir como um personagem de Borges, perdido em alguma biblioteca infinita de livros portadores de textos ininteligíveis. Paradoxalmente, nunca tivemos tanto acesso ao conhecimento, mas a sensação de que tudo escapa por entre nossos dedos e se torna ultrapassado é constante e insistente.

O livro de Pierre Bayard, Como falar dos livros que não lemos (Objetiva, 2008), é um achado precioso em meio a tantos livros que falam de nada ou que se propõem a falar de tudo. O título é pretensioso e a imagem da capa não deixa dúvidas quanto à tentação de desvendar uma "chave de leitura" mágica que possa sustentar-se diante dos labirintos herméticos da linguagem e do saber. Sim, porque por mais contemporâneos que possamos ser, ainda permanecemos encantados e submetidos ao jugo do saber que emana dos livros, estes guardiões da cultura e insígnias de erudição. Não é à toa que a literatura de auto-ajuda está aí, para vender segredos palatáveis em suas ilusões de grandeza e domínio. Saber é poder, já dizia Foucault. A sedução, portanto, é clara. Folheando o livro, encontramos elementos clássicos de um livro desse naipe: uma classificação da qualidade dos livros citados com base no nível de leitura (de "apenas folheado" ou "lido rapidamente" até "nunca ter ouvido falar", mas excluindo qualquer possibilidade de apreensão integral) e uma divisão em partes e capítulos com títulos afirmativos e esclarecedores como "Maneiras de Não Ler", "Condutas a Adotar" e etc. Portanto, o livro de Bayard tem tudo para ser uma auto-ajuda... Mas não é! Está aí a sua preciosidade.


Confesso que na primeira vez em que vi o livro cai no engodo e apenas dei um sorriso complacente: "mais um compêndio de dicas de retórica para se auto-promover!" É bem verdade que na vida acadêmica há muito de retórica na sustentação do que os lacanianos consagraram como o "suposto saber", mas que os alunos mais aptos logo aprendem a discernir como "embromation" ou, em uma versão ainda mais escrachada, "fazer carão". Infelizmente, que seja pelos desobramentos da cultura contemporânea, quer seja pela má formação de professores e alunos, cada vez mais se valoriza a performance e o semblante no lugar de algo que costumava se chamar de sabedoria em essência. Bem, os essencialismos estão realmente fora de moda, mas isso não quer dizer que a alternativa seja uma colagem imaginária perversa, em que as palavras soam fetichizadas como meros atributos de poder. Em outras palavras, a discursividade contemporânea cada vez mais é uma retórica da persuasão e de atribuição de insígnias de status social: "manipule o jargão, faça o carão e blend in... Imagem é tudo!" Como já dizia Marx, na modernidade tudo que é sólido desmancha no ar.


Pois bem, voltando para nosso mote: ainda existe uma diferença entre a pura embromação, semblante de saber, e uma boa formação, que permite situarmo-nos em uma rede de conceitos e posições que estrutura uma determinada região da cultura, no caso, a acadêmica científica ou literária.O que Bayard faz sutilmente e ironicamente é deslindar em pequenos ensaios uma determinada compreensão do que é a experiência da linguagem e de como ela se articula na constituição de uma cultura própria. Como bom amante das teorias da linguagem que deve ser (afinal é francês, psicanalista e literato!), o autor faz de forma elegante e sem grandes rasgos de erudição a apresentação de uma tese que é fundamental para a lingüística e para a psicanálise contemporânea: o sentido se articula na diferença e, portanto, o domínio da linguagem e de uma cultura semiótica (de signos) se dá não por um conhecimento elementar dos seus componentes individuais, mas pela estrutura geral de articulações entre os elementos, criando remissões, tradições e horizontes de sentido com os quais as obras dialogam e nos quais se inserem. Em outras palavras, um livro não é uma obra sozinho, mas somente na relação com a tradição a que pertence. Um bom domínio dos marcos referenciais dos campos de saber possibilita julgar muito do conteúdo de um livro e de sua contribuição mais geral. Um bom professor e um bom leitor são aqueles que habitam essa tradição e podem produzir a diferença em sua apreensão da obra, ou seja, é preciso também se distanciar daquilo que se lê para poder conhecer melhor. É nesse duplo sentido que a leitura integral é uma falácia e a verdadeira leitura tem algo de uma "não-leitura"!


Os textos são pequenos ensaios que partem de grandes obras de literatura e de cinema, desenvolvendo com maestria a estranheza de ver grandes autores defendendo a não-leitura de forma mais ou menos descarada e problematizando a atividade de leitura e o significado do livro. Assim vemos Oscar Wilde, Umberto Eco e Voltaire sendo trazidos à baila para justificar pequenas fórmulas que servem de epígrafe didáticas aos capítulos, como "Onde o leitor verá que é menos importante ler este ou aquele livro, o que é uma perda de tempo, do que ter sobre a totalidade dos livros aquilo que um personagem de Musil chama de uma “visão de conjunto”." Ou, ainda, o recurso a sugestão de estratégias clássicas do arsenal da auto-ajuda e na linha do Como fazer amigos e influenciar as pessoas, que se mostram mais do que meras estratégias retóricas e expressam aspectos interessantes da prática discursiva, como, por exemplo,  "não ter vergonha", "impor as próprias idéias", "inventar os livros" e "falar de si". O que é mais interessante no livro é esse olhar sutilmente irônico, que não cai nem na descarada fundamentação da retórica na ciência nem em uma total desconstrução desse tipo de ideologia pelo criticismo acadêmico. Dai a ambigüidade que dá a tônica do texto e envolve o leitor até o fim, capturado nessa transitividade entre modos discursivos. Levar o sentido de um discurso até o fim e ver ele se transformar em seu contrário, eis o absurdo da verdadeira ironia. Nesse sentido, Bayard é um mestre da ironia e desenvolve um humor inteligente dentro de uma escrita fina e ágil.  


Por tudo isso o autor se mostra bem-sucedido na tarefa de mostrar essa discussão hermenêutica sobre a leitura e produção de textos ironicamente embalada em um formato fast food. Não se enganem. Trata-se de um prato saboroso que deve ser deliciado com calma e que nos deixa a desejar. Portanto, é um livro mais do que recomendado para nos lembrar que conteúdo não é sentido e que consumo não é desejo. 

Quiz e Jogos sobre Cultura Pop

Para quem gosta de testar seus conhecimentos sobre cultura pop aí vai uma dica de ouro: o site FLASH POPS, que faz parceria com a VH-1 Brasil. Divirtam-se!

http://www2.uol.com.br/flashpops

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O Livro Digital como alternativa para as Universidades

Licenciamento de livros digitais pode ser uma alternativa viável para substituir a pirataria semi-oficial do XEROX nos cursos superiores.

Como todo mundo sabe, a discussão sobre direitos autorais encontrou uma ampliação e renovação significativa com a popularização da internet. Muito tem sido falado sobre a pirataria de vídeos e músicas pela internet. Curiosamente, pouco se discute e na verdade pouco se vê a pirataria de textos. Isso, contudo, não quer dizer que ela não exista. Ela é, na verdade, uma das mais antigas, uma vez que se instalou por meio da famosa e já institucionalizada "xerox" da faculdade, ou seja, está por aqui consolidada desde os anos 70. Simplesmente não tem aquele que tenha feito um curso superior que não tenha participado desse expediente para estudar.

Pois bem, mas a questão é que se trata de um crime e, como muitas coisas no Brasil, é um crime que simplesmente está na base do sistema educacional, pelo menos em nível superior. Em outras palavras, é o verdadeiro jeitinho brasileiro em ação: o aluno não tem dinheiro para comprar os livros, as faculdades não disponibilizam material suficiente para os alunos, vem o intermediário e.... pronto! Acabou o problema para ambas as partes: o trabalho sujo fica terceirizado e lá de vez em quando alguém dá uma mascarada na situação. Sim, porque vira e mexe alguma associação de livreiros dá um apertada e se faz alguma coisa. Na minha época de estudante apareceram as páginas impressas em papel vermelho para estragar a cópia xerográfica. A tecnologia avançou, chegamos à era digital e hoje simplesmente é impossível impedir que qualquer material seja escaneado e distribuído pela internet. Agora é comum o seguinte acordo de cavalheiros: a universidade fecha o contrato com um serviço tercerizado para cuidar das cópias e impressões, mas exige que não se copie mais do que 20% de um livro, para preservar os direitos autorais. Nem precisa dizer que na maioria dos lugares se faz vista grossa para esses limites... De qualquer forma, é pura hipocrisia! Nos dias de hoje, nada pode garantir que não se faça cópias dos textos.

A verdadeira questão é que as universidades deveriam garantir a disponibilidade do acervo para os alunos, o que só é garantido minimamente pelas exigências do MEC de se ter pelo menos 1 livro da bibliografia básica de uma disciplina para cada 10 alunos o que, convenhamos, não é suficiente de forma alguma. O fato é que um aluno gasta bastante dinheiro por semestre para tirar cópias de textos que depois vão quase que certamente para o lixo. Trata-se de uma considerável perda de trabalho, dinheiro e recursos!

Nesses últimos anos, o formato do livro digital começou a aparecer com um pouco mais de força. Acredito que tamanha dificuldade na aceitação desse tipo de mídia seja a resistência em abrir mão do livro impresso. Eu mesmo sou daqueles que prefere manusear o livro, admirá-lo e guardá-lo nas prateleiras do escritório. Sou um verdadeiro rato de biblioteca e simplesmente adoro procurar coisas interessantes passando os olhos nas prateleiras das bibliotecas e livrarias. Assim, me dói muito defender o que vou afirmar, mas o faço por questões de praticidade e de justiça. Então vamos lá: o campo dos textos acadêmicos universitários é um ótimo mercado para os livros digitais e outras formas de disponibilizar conteúdo via arquivos eletrônicos!

Vejam a situação dos xerox de universidade hoje. Praticamente todos já trabalham com arquivos digitalizados em PDF para impressão. Não seria muito mais prático se os arquivos fossem disponibilizados para os alunos. Isso já acontece, embora em pequena escala, porque as copiadoras privatizam sua pirataria e normalmente não liberam o arquivo para os professores e alunos pelo receio totalmente justificável que seu trabalho se torne dispensável. Enfim, não cabe discutir quem é o pior ladrão nessa situação, afinal somos todos corruptos, mas ressaltar que a tecnologia já está disponível e em uso. A pergunta é: por que as editoras do ramo ainda não se tocaram para esse nicho de mercado?!? Por que não fazer um programa massivo de publicações digitais de livros-texto para o meio universitário???

Um lvro digital nada mais é do que um arquivo em formato de visualização de impressão, como o já famoso PDF e outros como o EPUB. Podem ser lidos em qualquer computador ou leitor de livro digital (que tem a única vantagem de exibir em tela de tinta eletrônica, que não emite luz e, portanto, não cansa a vista na leitura) com a maior facilidade e praticidade. Em teoria, um livro digital poderia ser bem mais barato do que um livro impresso, já que o custo de impressão é zero e o de distribuição muito menor. Curiosamente, até agora o preço só está cerca de 20 a 30 por cento mais barato nas livrarias, o que é um absurdo. Temos de acreditar na ladainha da baixa popularização da tecnologia, dos custos de pesquisa e etc., embora seja muito difícil equiparar esse caso com o que acontece com os equipamentos.  Basta lembrarmos que no ramo dos livros cerca de 30% do valor de capa é lucro direto da livraria e que as editoras costumam negociar descontos adicionais em casos especiais (compras grandes, formadores de opinião, etc.). Enfim, a lógica do capitalismo se aplica a todos, certo? Vejam um exemplo gritante: a rede Anhangüera Educacional tem um programa de livro-texto em que os alunos conseguem comprar os livros das grandes editoras com até 80% de desconto! A universidade negocia os lotes direto com a editora e ainda reconfigura o layout de acordo com suas necessidades. Bingo: um livro que conta como material didático da instituição com preço baixo para o aluno. Um duplo golpe de marketing: conteúdo diferenciado a preço mínimo!

Isso quer dizer que negociando direto com as editoras você pode conseguir um ótimo desconto no livro impresso. Agora imagine o mesmo sendo feito somente com o arquivo digital, sem o custo de impressão e toda a logística de distribuição? Claro que nem todo mundo tem o cacife de uma Anhanguera ou de uma UNIP para esse tipo de negociação, mas porque as editoras não fomentam esse tipo de parceria? Ora, seria só uma questão de desenvolver contratos de licenciamento de conteúdo para as universidades, da mesma forma que tem sido feito com os softwares. A universidade compra a licença de, digamos, uma centena de cópias do livro digital x, por semestre. Os alunos poderiam então baixar pelo sistema a coleção de livros que iria utilizar durante o semestre. Ele poderia ler onde quisesse, inclusive imprimir, se preferir. Se todos os alunos tiverem sua cópia, não haverá necessidade de fazer cópias extras. Claro que isso sempre poderá gerar uma pirataria lateral, mas isso é inevitável. Assim como ocorreu com os softwares, devemos desistir de pegar o usuário final e focar nas empresas que lucram com isso. Isso quer dizer que não interessa o que o aluno faça com sua cópia, ele já pagou por ela por meio do contrato que a universidade fez com a editora, certo? Com isso a editora ganha em cada licença o que lhe é de direito!

A idéia, em teoria, é muito boa: ganha o aluno, ganha a universidade, ganha a editora e ganha o autor. Claro que se precisa calcular os detalhes sobre o que cabe quem, mas é perfeitamente viável! Até a pobre copiadora não iria perder a serventia, já que sempre teria aquele que gostaria de ler o texto impresso ou o colega que queria uma cópia do texto de um outro colega, além das cópias de anotações, documentos, trabalhos e demais materiais acadêmicos. Aumentar a circulação de conteúdo não diminuiu o potencial de venda de um livro em papel, pelo contrário. Tenho certeza que os alunos e profissionais continuarão comprando os livros que lhes marcaram e têm como referência... Eu, pelo menos, sou destes que faz questão de comprar um livro que é bom!

Caros editores e reitores, está na hora de olhar para o futuro e aproveitar a oportunidade. Vamos acabar com essa injustiça e aproveitar para popularizar e baratear o acesso ao conteúdo dos livros. Em um país em que tão poucos lêem, cujas tiragens são mirradas e os preços altos, seria um grande bem.




 

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Intelectuais Maranhenses 3

Terceiro post da revista publicada pela Pitomba: Nietzsche.

Intelectuais Maranhenses 2

Segundo post da série, como prometido: Marx.

Intelectuais Maranhenses 1

O retorno do recalcado da história brasileira: a vida pregressa de Freud, Marx e Nietzsche.

Depois de tantos posts mais '"sérios", voltamos com um pouco de humor. Esse e o primeiro post de uma série publicada em uma revista alternativa do Maranhão. O mote é, claro, Freud. Mas os outros dois (Marx e Nietzsche) são muito legais e vamos publicar aqui também. Nossos agradecimentos a Bruno Azevedo (http://bazevedo.blogspot.com/).

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Quem disse que Psicanalista não lê Auto-Ajuda?

Livraria especializada em Psicanálise só tem livros de auto-ajuda na lista de mais vendidos


O começo de ano é uma ótima oportunidade para os saldões de livrarias e congêneres. Para ratos de biblioteca como eu é uma diversão só ficar garimpando pechinchas e raridades on-line ou in loco... Um dia desses recebi a mala direta da Pulsional, anunciado 30% por cento de desconto no catálogo da Editora Escuta. Confiram, tem uns bons títulos em promoção: http://www.livrariapulsional.com.br/

Para quem não sabe, a Livraria Escuta e a Editora Pulsional são os dois braços de um projeto bem sucedido de formar um nicho editorial de Psicanálise em São Paulo. Sempre nos arredorres da PUC-SP, de onde vem seus principais mantenedores e muitos autores, a livraria pulsional fez história na psicanálise paulistana. Além de publicar livros de vários autores da psicanálise paulistana e brasileira, lançou uma série de periódicos, entre eles o famoso "Boletim" da Pulsional que segue até hoje como uma referência na literatura acadêmica de psicanálise. O grupo também teve uma atuação importante na consolidação da articulação entre psicanálise e universidade, tendo como rebento, entre outras coisas, a Associação Brasileira de Psicopatologia Fundamental com sua rede universitária de pesquisa. Por tudo isso, a editora escuta e a livraria pulsional são um marco da psicanálise em São Paulo. Então, para quem não conhece, vale à pena uma visita.

Já sabia que há algum tempo a Livraria Pulsional tinha deixado de ser uma livraria específica de Psicanálise e começado a vender livros em geral. Isso por si só já indicava que a venda de livros psicanalíticos para profissionais da área não estava dando conta do recado.. Tudo bem, tem a concorrência da internet, com os sites das grandes redes de livrarias e sebos on-line, vai ver que os "psi" não estavam mais aparecendo por lá para comprar... Criaram então um site novo que é bem simpático e funcional, tendo como objetivo declarado ser uma referência psi na internet. Ótimo, sou um fã declarado!

Mas eis que fazendo minha busca de pechinchas me deparo com a lista de indicações e de mais vendidos.  Não resisti à minha curiosidade e fui ver a lista dos mais vendidos. Três dos oito livros eram (Pasmen!):

  • Ágape - Padre Marcelo Rossi
  • A Cabana - William Young
  • Querido John - Nicholas Sparks
Isto é, claramente segmento de bem-estar e auto-ajuda! Os outros três livros tampouco eram técnico-científicos. Isso quer dizer que ou o público da livraria mudou - o que acho muito pouco provável - ou o profissionais da psicanálise estão lendo mais livros de auto-ajuda da lista de "Veja Recomenda" do que os livros de sua própria área. Dado tamanho prestígio da editora e o que representa simbolicamente, isso é uma verdadeira vergonha para nós! 

Psicanalistas do Brasil, vamos ler os livros de nossa área?!?!

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Entrevista com Maria Rita Khel

Capa-153
Para quem é do meio, Maria Rita Khel dispensa apresentações. Mas no final do ano passado ela esteve mais evidente na mídia por causa do episódio de sua "dispensa" do Estadão e por ter ganho o prêmio Jabuti com seu último livro "O tempo e o cão". Isso rendeu a capa da Cult de Dezembro e nos presenteou com uma ótima entrevista. Segue o link: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/12/psicanalista-politica/

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Japiassu e o Eclipse da Psicanálise


Um Livro em Defesa à Psicanálise


Resenha de "O Eclipse da Psicanálise", de Hilton Japiassu (Rio de Janeiro: Imago, 2009)


Quando eu ainda era estudante de psicologia, havia uma certa aura em torno de Japiassu. Era um acadêmico reconhecido que escrevia sobre epistemologia da ciência e sobre os fundamentos das ciências humanas. Falava-se muito dele até meados de 1990, mas com o tempo seu prestígio foi caindo. Na verdade, me deu a impressão que ele foi sendo esquecido; meio que ficando para trás diante das novas gerações que vinham discutir história e epistemologia da ciência. Penso que nas ciências humanas e na psicologia seu anacronismo foi se operando na medida em que foi se consolidando uma leitura mais contemporânea dessas questões, escorada principalmente em Foucault. Mas eis que depois de um certo tempo esquecido esse autor retorna com a publicação de um livro sobre Psicanálise, o que me chamou muito a atenção, até porque nunca me pareceu que essa fosse muito a praia dele. Resolvi então ler e cheguei a algumas conclusões que compartilho com vocês.
Minha impressão do trabalho de Japiassu sempr foi de que seus livros de introdução às ciências ou de discussão epistemológica mais ampla eram bons, mas quando chegava na discussão sobre as psicologias, a coisa deixava um pouco a desejar. Sua formação era em Filosofia e sempre trabalhou com epistemologia e história da ciência. Seu livro sobre a Epistemologia da Psicologia era interessante, mais irregular. Detinha-se sobremaneira na discussão sobre os behaviorismos, partindo de uma visão um tanto restrita de que seriam a única saída verdadeiramente viável para o projeto de uma "psicologia científica". Nisso outras alternativas epistemológicas dentro do campo das teorias e práticas "psi" ficavam subdimensiondas. Embora reconhecesse a pluaridade de referenciais epistemológicos dentro do campo psi, essa discussão não era abordada de forma aprofundada, ficando em alguns esboços esquemáticos que não convenciam. Além disso, parecia que a Psicanálise era o único sistema que se contrapunha aos ditames da psicologia científica, de forma que toda a questão ficava muito polarizada entre psicologia experimental e psicologia clínica. Diante de algumas leituras mais críticas que vinham aparecendo, como a de Luis Claudio Figueiredo, sua apresentação carecia de sistematização e aprofundamento.
Além disso, a escrita de Japiassu sempre me incomodou. Acho que alguns estilos de escrita são muito complicados para o leitor. Existe, por exemplo, o estilo que eu chamo de "acadêmico enciclopédico", que expõe conhecimento por meio de ricas citações, muitas vezes na língua original da fonte. É um recurso bastante cansativo, principalmente se o autor se restringe a elencar esses pedaços de informação sem articulá-los ou discuti-los. Trata-se de uma redação muito colada na dissertação e que pode ser extremamente irritante se o autor toma gosto pela coisa e se perde na demonstração de sua erudição e intimidade com os clássicos. É, inclusive, o estilo utilizado por um outro grande autor no campo da história e epistemologia da psicologia: o Antônio Gomes Penna (que merece um outro texto). De qualquer forma, peca pelo excesso. Outros autores tem uma tendência oposta, que é a de escrever de forma muito coloquial e organizando os conteúdos de forma muito casual. Muitas vezes abusam do recurso a tópicos e notas de rodapé, tecendo uma discussão que acaba desorganizada e por demais ampliada. Esse estilo "lista de tópicos" é a cara de Japiassu. Em muitos dos seus livros os parágrafos chegam a ser substituídos por pequenos textos em tópicos que se articulam mal entre si, deixando o leitor confuso com relação ao sentido da argumentação. Isso quer dizer que você perde facilmente o fio da meada e tem a impressão também que a coisa acaba não se aprofundando nunca e retornando sempre. Esse estilo peca também por não permitir uma apreensão mais sistemática dos conteúdos e embora dê a impressão de uma leitura "fácil", não chega onde deve chegar. Pois bem, nesse último livro o estilo de Japiassu mantem-se o mesmo. Isso acaba por reforçar a impressão geral que tive da leitura deste livro: apresenta o campo da discussão, mas não traz nada de novo e original para ela.
Ademais, a impressão é reforçada pelo tom panfletário que o livro necessariamente tem. Isso porque é claro (como mostra o título) que a motivação do autor em escrever o livro foi defender a Psicanálise diante do atestado de crise dado pela cultura e pela ameaça de aniquilamento proferida pelo campo das neurociências. Nesse sentido, o livro de Japiassu é uma tentiva de resposta ao Livro Negro da Psicanálise, polêmica obra de ataque ao saber e à prática psicanalítica produzida pelo campo da psiquiatria e das neurociências na França. Para quem não sabe, foi um livro publicado em 2005, em vista da comemoração dos 150 anos de Freud, que provocou uma enorme polêmica e um movimento de defesa que gerou um livro-resposta (publicado seis meses depois) e uma série de debates e textos que chegaram até o Brasil. Basta uma rápida busca no Google que se acha textos em resposta a essa questão, de Jorge Forbes a Elizabeth Roudinesco. Diante disso, o livro de Japiassu acaba ganhando o tom que essas discussões sempre têm: defesas acaloradas e posições extremadas.
Pois bem, enquanto um livro que se propõe a apresentar a polêmica e mostrar a tônica das respostas dadas em defesa da psicanálise, o trabalho de Japiassu é elogiável e bem vindo, até porque muito do que foi publicado sobre a polêmica está em francês e, portanto, não é acessível a todos. Está lá o essencial das respostas de Roudinesco e de René Major, por exemplo. Mas no que tange a apresentar uma resposta original e específica para essa discussão, o trabalho de Japiassu deixa a desejar. O que se vê é uma ampla apresentação de tópicos que, em geral, já são conhecidos por quem é da área: a originalidade da escuta psicanalítica, a ruptura da psicanálise com o projeto da modernidade, o papel político e social da psicanálise diante da sociedade pós-moderna, a psicanálise como lócus de resistência da subjetividade, a crítica ao avanço da ideologia cientificista e consumista, etc. Contudo, nem todo mundo que se aproxima da psicanálise o faz por esse viés crítico, então o livro é uma boa introdução a essa discussão. Mas os trabalhos de Joel Birman, Jurandir Freire e Maria Rita Khel, por exemplo, tem maior alcance e substância. Em suma, fiquei com a impressão que apesar de simpatizante (o que por si só foi uma verdadeira surpresa), Japiassu ainda se aproxima da questão como um comentador que tomou posição mas ainda é estrangeiro ao campo.
Assim, parece-me que o livro de Japiassu tem o mérito de apresentar e manter em foco a discussão sobre o lugar da psicanálise na sociedade e na cultura contemporâneas.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Freud Explica?

Para começar nosso ano, gostaria de lançar um pequeno desafio: de onde vem a expressão "Freud explica"?
Todo brasileiro sabe que essa é uma expressão consagrada. No entanto, qualquer estudante de psicologia sabe que Freud não "explica" nada... Se resgatarmos a oposição clássica nas ciências humanas entre explicação e compreensão, sabemos que a psicanálise, em sua herança hermenêutica, fica do lado das ciências compreensivas. O que justificaria então esse jargão? Seria um anacronismo, resquício dos primeiros tempos da entrada da Psicanálise no Brasil? Já procurei bastante na internet sobre o assunto e não consegui encontrar uma origem para essa história. A única coisa que percebi é que a expressão aparece mesmo na língua portuguesa (incluindo o português de Portugal).
Pois é, a questão está no ar. Quem tiver alguma dica, por favor me diga...

Ano Novo

Caros leitores!

Um feliz ano novo para todos. Dr. Silvério pretende aparecer um pouco mais neste ano. Fiquem ligados!